BOM-SENSO E BOM-GOSTO
CARTA
AO EXCELENTISSIMO SENHOR
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
POR
Anthero do Quental
COIMBRA
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1865
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1865
«Ex.mo Sr.
Acabo de ler um escripto de v. ex.ª onde, a proposito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se falla com aspera censura da chamada eschola litteraria de Coimbra, e entre dois nomes illustres se cita o meu, quasi desconhecido e sobre tudo desambicioso.(...)
O que se ataca na eschola de Coimbra (talvez mesmo v. ex.ª o ignore, porque ha malevolos innocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião litteraria menos provada, uma concepção poetica mais atrevida, um estylo ou uma idêa. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se á independencia irreverente de escriptores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciencia. A guerra faz-se ao escandalo inaudito d'uma litteratura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o sello e o visto da chancelharia dos grãos-mestres officiaes. A guerra faz-se á impiedade d'estes hereges das lettras, que se revoltam contra a auctoridade dos papas e pontifices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu nas frontes o signal da infallibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsavel por seus actos e palavras...
Agora quem move estes ridiculos combates de phrases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontifices; é o espirito de rotina violentamente incommodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que quer dormir socegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam—nós só lhe queremos puchar as orelhas!
Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da eschola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua rectidão moral, do attentado de sua probidade litteraria, da impudencia e miseria de serem independentes e pensarem{6} por suas cabeças. E combatem-se por faltarem ás virtudes de respeito humilde ás vaidades omnipotentes, de submissão estupida, de baixeza e pequenez moral e intellectual.
V. ex.ª, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas tambem pequena e miseravelmente feita. Mas é que a eschola de Coimbra commetteu effectivamente alguma cousa peior de que um crime—commetteu uma grande falta: quiz innovar. (...)
Levanto-me quando os cabellos brancos de v. ex.ª passam deante de mim. Mas o travesso cerebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sahem d'elle, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. ex.ª precisa menos cincoenta annos de edade, ou então mais cincoenta de reflexão.
É por estes motivos todos que lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. ex.ª
Coimbra 2 de Novembro de 1865.»