segunda-feira, 20 de julho de 2015

Português - a língua que somos

Ditosa língua*

O peso destes nomes curvaria gente bem mais robusta do que eu, não fosse o caso de a leveza ser o primeiro atributo de um escritor. Aliás, quanto mais os frequentamos, menor pavor inspira a sua sombra.

Não venho aqui como parceira mas como íntima, como alguém mais ligado pelo amor do que por ambições identitárias. Com Luís de Camões passeio em Sintra, enquanto ele espera o jovem rei que anda pelos bosques, enfeitiçado, já um pouco ensandecido. E a ligação aos meus contemporâneos, Sophia e Saramago, Eduardo Lourenço, Maria Velho da Costa, Mia Couto, feita de encantamento e aprendizagem, toca-me infantilmente o coração quando me traz afinidades, uma flor de frangipani que esvoaça num jardim de Maputo, as palavras que não partiram com quem já partiu, uma tão querida voz ao telefone, uma carta enfeitada de papoulas. Estou com eles, não entre eles. E assim estou bem.

Devo falar de tripla gratidão: a gratidão aos promotores deste prémio ao qual foi dado o nome maior das nossas letras, a gratidão aos membros do júri que escolheram a minha escrita para tamanha dádiva, a gratidão a um acaso de nascimento que me deu como língua materna o português.
Também com gratidão evoco a tão citada, e mal, passagem escrita por Pessoa, aliás Bernardo Soares, pois que, achando-se escrita, e por ele escrita, me abre um certo caminho à ousadia: que amo mais a língua do que a pátria. Que me imagino armada, a defendê-la contra quem a quisesse aniquilar. As lutas pela independência que travámos deixam-me o arrepio de pensar que o português se perderia, se perdêssemos. Que morte há de ter sido a de Camões, julgando que morria com a pátria, isto é, com o lugar dos seus poemas!
(...)
Faz agora oito séculos esta língua. É a prosa formal de um testamento que atesta a data. E prosas há tão belas naquele dealbar, tão saborosas ainda quando anónimas, que dir-se-iam um bom pressentimento sobre o tanto e o tão grandioso que depois ia ser escrito. Mas é na poesia que parece avistar-se um destino, no sentido não de fatalidade mas daquilo a que alguns chamam o talento colectivo e que talvez não passe de especial, convidativa variedade na fonética.

Fácil é para nós esta função de herdeiros de tesouro tão diverso e tão bem acabado, tão antigo e, no entanto, tão reconhecível. Enquanto noutras línguas a pronúncia se foi modificando, a ponto de uma rima do século XIX já não se efectivar passadas décadas, nós cantamos Camões sem que se torne necessária qualquer adaptação. Como se cada uma das palavras reconhecesse o seu momento de perfeição e nele se detivesse, porque o quis. O apetite pelos estrangeirismos, moderado que foi, não lhe fez mal. Incorporou-os elegantemente. Não me refiro às condições presentes, pois, do que ninguém sabe, ninguém fala. E ninguém sabe o que está hoje a acontecer.
(...)
Como num pesadelo, não sabemos por que meio fomos dar a esta nova era de horror e de destruição. Umas são nossas velhas conhecidas, outras indecifráveis, por ausência de modelos anteriores. Não lhes antecipámos a chegada. Na Idade Média que nos ameaça não há cancioneiros nem reis-poetas. Na ditadura da economia, a palavra é esmagada pelo número. A matemática, que começou nobre, aviltou-se, tornando-se lacaia. Se a literatura salva? Não, não salva. Mas se ela se extinguir, extingue-se tudo.

O nosso mundo de sobreviventes está seguro por laços muitos finos. Eu vejo os fios que unem os textos nas diversas versões do português, leves fios resistentes e aplicados a construirem uma teia que não rasgue. Quando o angolano Ondjaki dedica um poema ao brasileiro Manoel de Barros, quando Mia Couto reconhece a influência que teve Guimarães Rosa na sua escrita transfiguradora e transfigurada pelas africanas narrativas do seu povo; quando a portuguesa Maria Gabriela Llansol  considera Lispector «uma irmã inteiramente dispersa no nevoeiro», vemos a língua portuguesa a ocupar - não como o invasor ocupa a terra, mas como o sangue ocupa o coração - um espaço livre, um sítio para viver, uma comunidade de diferenças elástica, simbiótica e altiva. Esta é a ditosa língua, minha amada.*

Eu dedico este prémio a uma entidade que é para mim pessoalíssima, à Grécia, cuja voz ainda paira sobre as nossas mais preciosas palavras, entre as quais, quase intacta, a poesia. Dedico à Grécia, sem a qual não teríamos aprendido a beleza, sem a qual não teríamos nada ou, no dizer da Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, "não seríamos nada".    

ζουν Ελλ?δα , zoun Elláda, viva a Grécia.

* Hélia correia adapta o célebre verso de Camões - «Esta é a ditosa pátria minha amada» (C. III, est. 21)

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