segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

J. Saramago, Memorial do Convento, A epopeia da pedra

 

 Para apoiar o estudo de preparação para o Exame do módulo IX, aqui fica esta ajuda.

René Margritte
O capítulo XIX é consagrado ao transporte de uma enorme pedra de Pero Pinheiro para Mafra (na distância de 15 km), que se prolonga por oito dias. 
 
Memorial do Convento tem uma base histórica, entrecruzada com a ficção, numa visão crítica, como é assumido pelo próprio narrador: em vez da História protagonizada pelas figuras tradicionalmente consagradas pela memória escrita, nomeadas nos livros, a História protagonizada por um povo anónimo. 
 
Afinal: deixar em MEMORIAL o outro lado da História, aquele que costuma ficar no esquecimento: "já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só por isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende." (cap. XIX) 

O narrador faz sobressair o esforço e a determinação do povo, elevando-o a verdadeiro herói da obra, resgatando-o do anonimato. 
 
O povo é o herói coletivo que, sacrificado, mal nutrido e miserável, alcança uma dimensão trágica - porque cumpre um terrível destino que não escolheu (cf. com a 1ª epígrafe) - e se eleva acima da condição de «bicho da terra».
 
A gente que transportou esta pedra - e todas as outras pedras - e construiu o convento é o povo anónimo que é arrebanhado e trabalha e sofre às ordens de el-rei, não só para que este possa cumprir a sua promessa mas igualmente como estratégia de afirmação política da sua grandeza e importância. 
 
É um povo miserável, simples e trabalhador, a quem o narrador-autor pretende tirar do anonimato, dando individualidade a várias personagens e também atribuindo-lhe, simbolicamente, um nome para cada letra do alfabeto, numa vontade de o tornar imortal - na memória -  e de o incluir na História de Portugal: «…Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino…». (pág. 244)
 
A descrição do transporte da mãe pedra no carro designado por «nau da Índia com rodas» revela as enormes dificuldades da viagem, misturando um tom simultaneamente emocional e humorístico do narrador: 
 
«…vão aqui seiscentos homens que não fizeram nenhum filho à rainha e eles é que pagam o voto, que se lixam, com perdão da anacrónica voz».


Elementos complementares da análise linguística 
(Ver livro e Manual)

Discurso direto
"É a pedra, (...) Nunca vi uma coisa assim em dias da minha vida" - linha 4;
"É a mãe da pedra" - linha 27
....
O discursos direto é sempre um recurso de aproximação do leitor ao narrado, neste caso para "garantir" a veracidade, o caráter testemunhal que o narrador atesta no início. Neste caso, os comentários dos homens, em discurso direto,  dão conta da enormidade da pedra e do espanto que isso causa.

A observação - É a mãe da pedra - tem óbvio significado simbólico (ver texto)

Expressividade dos nomes e adjetivos
"Enorme, uma brutidão de mármore rugoso" - l. 10
"Mãe gigantesca" - l. 29 (importante a simbologia do nome e o adjetivo)

Deíticos temporais "Como ouvimos agora (...) neste instante (l. 12)
Inserem-se no propósito testemunhal, na descrição vívida de «como realmente se passou», tal como os deíticos relativos ao espaço.

Deíticos espaciais "É aqui que virá acostar" - l. 22 "Lá em Mafra" - l. 32

Comentários do narrador
- dão elementos para a compreensão da metáfora da pedra

Enumeração - associada a:
- engrandecimento da tarefa do transporte e das dimensões da pedra
- dignificação do trabalho, através da lista dos instrumentos
- resgate do esquecimento do povo anónimo, através dos nomes dos homens de A a Z

Neste episódio também é muito revelador:
- a descrição das tarefas, dos pormenores do transporte, do esforço físico dos homens e dos animais - o que também revela a dimensão da pedra e a complexidade do empreendimento
- o recursos a interjeições/onomatopeias



R. Margritte

Memorial do Convento - «Memórias de Blimunda» (recriação)

 Estes são textos criados pelos alunos, após a leitura e interpretação de Memorial do Convento. Apesar de serem uma (re)criação, as informações, eventos, características têm por base o conhecimento da obra.

Memórias de Blimunda 

Eu, Blimunda, mais conhecida por «Voadora»1, sou a personagem central de um Romance, do Romance vivido com o grande e eterno amor da minha vida, vida essa muito atribulada e atípica. Para o caso de ainda não ter sido redigida tal coisa, assim como outrora nunca fora imaginada, fica aqui assente, através dos meus olhos que tudo vêm e que lá no alto, no céu, já estiveram e uma Passarola já construíram.  

Conto a minha história, por ser diferente e cativante, talvez até por já ter experienciado um pouco de tudo, e aproveito para homenagear os que comigo também voaram, por um destino incerto. “Ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais”2, foi esta beleza oculta da literatura que me fez querer aprender a escrever, tarde aprendi, é certo, mas posso agora imortalizar os que vão no meu coração e me deixaram as suas vontades…    

 

Tudo começou no dia em que conheci o meu eterno amor. Curiosamente, foi um dos melhores e piores dias da minha vida. Foi o dia em que me apaixonei! Era eu uma inocente jovem de 19 anos que da vida pouco sabia, estava num Auto de Fé a ver passar a procissão dos sentenciados, onde por instinto primordial ou sinal maternal, dirigi-me ao alto homem que ao meu lado se encontrava, ele que no meio de tanto vigor e efusividade não revogava a sua postura serena, e perguntei-lhe, “Que nome é o seu?”3. Um segundo por favor. Já está, já passou, este foi o segundo que demorou a criar uma conexão afetiva e espiritual entre nós que até hoje permanece indelével. Ele respondeu-me, Baltasar Mateus, também me chamam Sete-Sóis.”3 

 

Ainda choro este dia? Sim! Um dia tão estranho que levou tudo o que eu tinha dando-me tudo o que tenho. Neste dia saí de casa acompanhada por um amigo e que para sempre amigo permanecerá, também ele pouco vulgar e deveras prosaico, era padre e chamava-se Bartolomeu. Veio por mim e por minha mãe que estava a passar ao pé de mim, tão perto, tão perto, e tão distante como nunca distantes tínhamos estado antes. Pois é, a minha mãe era uma das inúmeras injustas sentenciadas, razão pela qual nada lhe pude dizer senão sussurrar ao padre, Ali vai minha mãe”3. Foi degradada para sempre da minha vida, nunca mais a vi. 

 

As pessoas olham de lado. É verdade, sempre olharam e olharão, está nos genes desta gente mesquinha que só de olhar não se serve, sem pelo menos passar pelos excessos que fazem a “pocilga que é Lisboa”4. Sempre me senti diferente, a minha visão do mundo não é como a dos outros, nunca julguei nem critiquei ninguém. As pessoas mais simples, criticam o Rei (D. João V) pela ostentação e desperdício em luxúrias, no entanto, em toda a minha pobreza sentia que até sua alteza me olhava com inveja. Mas este será provavelmente o único com razão para tal, pois com um soldado maneta me juntei e sem nenhum tipo de acordos contratuais fui mais feliz que que nossa majestade nas suas variadíssimas tentativas cerimoniais.  

 

Tenho uma opinião distinta, eu sei. Eu avisei que a minha visão do mundo era diferente, o que não contei é que “Eu posso olhar por dentro das pessoas”5 e das coisas, não é preciso ficar tão incrédulo como o meu Baltasar ficara. Agora sou conhecida como a «Voadora», mas a minha primeira alcunha foi-me dada pelo padre Bartolomeu, que na altura enunciara, “tu serás Sete-Luas porque vês às Escuras”6.   

 

Todos somos singulares à nossa maneira, eu tenho apenas algo sobrenatural, cuja tamanha capacidade não requer preocupação, porque “Não vejo se não estiver em jejum”5. Ainda assim, este meu dom tem tanto de bom quanto de mau… Ai, as coisas que já vi, horrendas, atormentadas, mas também este dom me permitiu ajudar a construir a barca voadora a que se chamou Passarola, pois conseguia “inspecionar a obra feita, descobrir a fraqueza escondida do entrançado, a bolha de ar no interior do ferro”7 e recolher as duas mil vontades que nos permitiram voar. Isto foi durante a epidemia, tantas recolhi que adoeci, mas com a música de um outro amigo de nome Domenico Scarlatti, nutrida novamente fiquei. 

 

A vida é só uma e toda ela cheia de altos e baixos. Basta olhar para mim, encontrei o amor da minha vida, amei-o incondicionalmente, perdi-o e reencontrei-o no seu momento final para recolher a sua vontade, estive às portas da morte, mas fui salva pela harmonia de um dos maiores músicos do meu século. Já me tentaram violar razão pela qual acabei por matar esse homem que caiu na tentação de tal monstruosidade, e era ele frade, mas coisas tristes não especificarei agora que estou inspirada. Já voei e vi o famoso convento de Mafra crescer do zero, vi por dentro e por cima.  

 

Reparei agora que já fiz de quase tudo. Sei que vivi uma vida plena e extraordinária. Posso afirmar que O céu é o limite!  

 

Bruno Azevedo, 12º B

 

Referências Bibliográficas 

1 – Capítulo XXV, p.396 

2 – Capítulo XIX, p.266 

3 – Capítulo V, p.56 

4 – Capítulo III, p. 30 

5  Capítulo VIII, p. 81 

6 – Capítulo IX, p.96