Capítulo 6(...)
Então chasqueei risonhamente o meu Príncipe. Aí estava pois a Cidade, augusta criação da Humanidade. Ei-la aí, belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra –uma camada de caliça, apenas mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes adeixáramos prodigiosamente viva, cheia dum povo forte, com todos os seuspoderosos órgãos funcionando, abarrotada de riqueza, resplandecente desapiência, na triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada deGraça. E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos,escutávamos – e de toda a estridente e radiante Civilização da cidade nãopercebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o 202, o soberbo 202, com os seus arames, os seus aparelhos, apompa da sua Mecânica, os seus trinta mil livros? Sumido, esvaído na confusão detelha e cinza! Para este esvaecimento pois da obra humana, mal ela se contemplade cem metros de altura, arqueja o obreiro humano em tão angustioso esforço?Hem, Jacinto?... Onde estão os teus Armazéns servidos pôr três mil caixeiros? E osBancos em que retine o ouro universal? E as Bibliotecas atulhadas com o saberdos séculos? Tudo se fundiu numa nódoa parda que suja a Terra. Aos olhos piscosde um Zé Fernandes, logo que ele suba, fumando o seu cigarro, a uma arredadacolina – a sublime edificação dos Tempos não é mais que um silencioso monturoda espessura e da cor do pó final. O que será então aos olhos de Deus! E anteestes clamores, lançados com afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, elemurmurou, pensativo:
-Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão!Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, umaIlusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa Ter na Cidade a base de toda asua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto!Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse serressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles comotrapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, comdentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda – esseser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobreAdão! Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe umanecessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre esubalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; erico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições,preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que osdum cárcere ou dum quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus comele recompensa os Santos ) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartandoo desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê,meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga;e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passamde alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega doassalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menorembate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva sevende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus doHimeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertadacarteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhadosem que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente osrecantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriorano homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade oulha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Idéias eFórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira,nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas asexpressões já exprimidas: - ou então, para se destacar na pardacenta e chataRotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço,inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidãocomo um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros,trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para apoeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltandono topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, naCidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e ocarvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas,e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – ohomem aparece como uma criatura antihumana, sem beleza, sem força, semliberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivocomo um escravo ou impudente como um Histrião... E aqui tem o belo Jacinto oque é a bela Cidade!
E ante estas encanecidas e veneráveis invectivas,retumbadas pontualmente pôr todos os Moralistas bucólicos, desde Hesíodo,através dos séculos – o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elasbrotassem, inesperadas e frescas, duma Revelação superior, naqueles cimos de Montmartre:
-Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!
-Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão!Tão facilmente vitorioso redobrei de facúndia. Certamente, meu Príncipe, umaIlusão! E a mais amarga, porque o Homem pensa Ter na Cidade a base de toda asua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto!Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo, e se tornou esse serressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto, de ossos moles comotrapos, de nervos trêmulos como arames, com cangalhas, com chinós, comdentaduras de chumbo, sem sangue, sem febra, sem viço, torto, corcunda – esseser em que Deus, espantado, mal pode reconhecer o seu esbelto e rijo e nobreAdão! Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe umanecessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre esubalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar; erico e superior como um Jacinto, a Sociedade logo o enreda em tradições,preceitos, etiquetas, cerimônias, praxes, ritos, serviços mais disciplinares que osdum cárcere ou dum quartel... A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus comele recompensa os Santos ) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão, ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar – e que, nunca fartandoo desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na Cidade se desumanizam! Vê,meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga;e adiante obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passamde alianças que o interesse, na hora inquieta da defesa ou na hora sôfrega doassalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menorembate da rivalidade ou do orgulho. E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva sevende, tarifada ao arrátel, como a de vaca! Contempla esse velho Deus doHimeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho da Paixão a apertadacarteira do Dote! Espreita essa turba que foge dos largos caminhos assoalhadosem que os Faunos amam as Ninfas na boa lei natural, e busca tristemente osrecantos lôbregos de Sodoma ou de Lesbos!... Mas o que a cidade mais deteriorano homem é a Inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade oulha empurra para a extravagância. Nesta densa e pairante camada de Idéias eFórmulas que constitui a atmosfera mental das Cidades, o homem que a respira,nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados, só exprime todas asexpressões já exprimidas: - ou então, para se destacar na pardacenta e chataRotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço,inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidãocomo um monstrengo numa feira. Todos, intelectualmente, são carneiros,trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para apoeira onde pisam, em fila, as pegadas pisadas; - e alguns são macacos, saltandono topo de mastros vistosos, com esgares e cabriolas. Assim, meu Jacinto, naCidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e ocarvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas,e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames – ohomem aparece como uma criatura antihumana, sem beleza, sem força, semliberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivocomo um escravo ou impudente como um Histrião... E aqui tem o belo Jacinto oque é a bela Cidade!
E ante estas encanecidas e veneráveis invectivas,retumbadas pontualmente pôr todos os Moralistas bucólicos, desde Hesíodo,através dos séculos – o meu Príncipe vergou a nuca dócil, como se elasbrotassem, inesperadas e frescas, duma Revelação superior, naqueles cimos de Montmartre:
-Sim, com efeito, a Cidade... É talvez uma ilusão perversa!
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