segunda-feira, 20 de abril de 2015

Nuno Camarneiro

Nuno Camarneiro licenciou-se em Engenharia Física pela Universidade de Coimbra, onde se dedicou à investigação durante alguns anos. Trabalhou no CERN (Organização Europeia para a Investigação Nuclear) em Genebra e concluiu o doutoramento em Ciência Aplicada ao Património Cultural em Florença. Em 2010 regressou a Portugal, sendo actualmente investigador na Universidade de Aveiro. 



Excertos:
“Do sangue para fora é quase tudo uma questão de serviço, pessoas que dão para mais tarde poderem cobrar. Os sorrisos são máscaras simpáticas, como os presentes, os beijos ou o sexo. O pragmatismo foi inventado antes do prédio, pratica-se aqui como em qualquer lado, são só homens e mulheres com vidas às costas.” (pág. 28).

“Quando fui pequeno, o inferno era quente e fundo, cheio de gente má que ardia nesse avesso de céu. Mas afinal o inferno é frio e sem companhia. O inferno vai do rés-do-chão ao terceiro e cada um arde por si, as dores separadas por paredes e noite, danados todos um a um.” (pág. 33).

“Assegurar-se de que o mundo novo não funcione pela mesma razão que o velho não funcionou, porque há homens que não cabem onde os querem meter. Porque há quem nasça com uma bomba desenhada na cabeça e passe a vida toda à espera de rebentar onde possa fazer mais danos. Por dentro do poder, da igreja, do escritório, da família, das letras, de uma casa cheia de fantasmas. Nenhum mundo pode ser perfeito se não tiver lugar para homens imperfeitos. No limite, talvez o único sistema possível seja o que parta de uma humanidade toda imperfeita em todas as coisas, a excentricidade como premissa.” (pág. 53).

“Depois a difícil questão da confissão. Os votos que fiz protegem-me do juízo mas não do pensamento, não do horror. Uma mulher conta um segredo a um homem à espera de que Deus a ouça e lhe perdoe, é uma coisa que se decide entre o pecador e o inventor do pecado. A mim cabe-me ouvir, calar e viver com o horror dentro de mim, sem castigo nem perdão. Mas eu sou um homem também, de pecados por todas as partes que se fundem com os alheios e, quando sonho, quando dispo os paramentos, quando vivo como outros vivem, acho-me incapaz de distinguir o mal que fiz do mal que escutei ou imaginei ou compreendi.

O lixo sai de casa e repousa no aterro onde é tratado e transformado, ninguém se preocupa com os contentores ou os carros da recolha ou os homens que o transportam. Mas é esse lixo residual, esse que se agarra às paredes e às mãos, a diferença entre o que produzimos e o que tratamos, é esse lixo que corrói os metais e a carne.

Deus é bom mas liga pouco a pormenores.” (pág. 61).


"A narrativa de Debaixo de Algum Céu ocorre num lugar comum: um prédio encostado à praia, onde vários inquilinos vivem as suas existências singulares e, simultaneamente, conjuntas. No que diz respeito ao tempo, uma semana é o suficiente para entendermos a dinâmica dos habitantes e das suas vidas, o purgatório em que se encontram e os acontecimentos que se desenrolam desde o final do ano até ao início do outro. São várias as personagens que nos são introduzidas: uma senhora de idade que vive sozinha com o seu gato, casais com filhos que enfrentam as dificuldades de um matrimónio já longo ou de um ainda cru, um padre que enfrenta os mistérios da religião e a inquietude da alma, uma mulher que traz às costas o fardo de um grande pecado, um informático que trabalha de noite sobre o futuro que ainda há-de vir, um velho homem que faz música através dos objectos que encontra na praia. São pessoas que conseguimos facilmente reconhecer, pois cada andar é uma etapa da vida, uma divisão da existência humana e de todas as suas dimensões, medos, alegrias, vivências – ou até desistências. Aquilo que sobressai na escrita de Nuno Camarneiro é a sua capacidade de colocar em palavras sentimentos e experiências que, por diversas vezes, passam desapercebidas ou ignoradas. O leitor, através deste romance, é convidado a entrar não apenas num prédio com janelas, portas, paredes e betão, mas, e sobretudo, numa visita guiada à sua própria natureza. Quando incitado a ler as características e dúvidas das personagens, é confrontado com pensamentos que são também os seus, com dúvidas que são também as suas. No fundo, Debaixo de Algum Céu mostra-nos um retrato de uma sociedade demasiado actual, de pessoas que contam as suas histórias; histórias que, de um modo ou de outro, nos pertencem. São problemas e inquietudes actuais, mas também seculares, a natureza do Homem posta a descoberto, como se a casa que o escritor fala não tivesse paredes, só janelas, só vidro, só uma transparência viva." 

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  No Meu Peito Não Cabem Pássaros

Excertos
“Junto às tias e a esta terra, tudo volta a ser pequenino. O sufixo parece ser anterior às palavras, o menino está cansadinho, a viagem foi boazinha, está tão branquinho, coitadinho. Portugal é assim, diminutivo e manso. O que foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas, os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?” (pág. 24).

“Fernando sabe o que teme, conhece o seu inimigo, que se veste de cinzento e anda de mão dada com toda a gente. O inimigo de Fernando é agradável, consensual, ligeiro. O seu inimigo é o agradável, o consensual, o ligeiro e todas as outras formas de nada que são modos de saltar do berço à cova sem importar a ninguém e muito menos a si próprio. Disfarçado no banal, será finalmente livre de ser qualquer coisa escondida, a sombra imensa de um funcionário que funciona.” (pág. 78).

“Um retrato traz-nos um pedaço de mundo visto pelos olhos da realidade. É assim que eu sou, assim me vêem. Que máquina mostrará um dia o outro lado da gente? Quem há-de retratar os bastidores desarrumados das nossas poses serenas?” (pág. 113).

“Está o céu a arder e há tanto para fazer antes que chegue a noite. Os homens são curiosos e fazem difícil a vida dos deuses, não há céu que os eleve. Os homens são de baixo, do que é pequeno, da rotina e do dever, das vontades curtas, da fome, do desejo que não se adia. Se o mundo acabar, que acabe, mas que nos leve de barriga cheia e nos dispense a metafísica.” (Pág. 130).

“No mesmo corredor mora outro homem, outro sono, o mesmo não acordar como quem furta ao tempo alguns minutos. Quem nunca quis dormir até a vida ser um lugar praticável, quem não conhece o desconsolo de vestir cada dia uma pele curta nas mangas, que vá abanar este homem, que o chame com a voz cheia de realidades e diga: «Levanta-te, Karl, levanta-te à hora de viver.»” (pág. 164).

 Dois comentários sobre

 No Meu Peito Não Cabem Pássaros "Que linhas unem um imigrante que lava vidros num dos primeiros arranha-céus de nova iorque a um rapaz misantropo que chega a lisboa num navio e a uma criança que inventa coisas que depois acontecem? Muitas. Entre elas, as linhas que atravessam os livros. Em 1910, a passagem de dois cometas pela Terra semeou uma onda de pânico. Em todo o mundo, pessoas enlouqueceram, suicidaram-se, crucificaram-se, ou simplesmente aguardaram, caladas e vencidas, aquilo que acreditavam ser o fim do mundo.
Nos dias em que o céu pegou fogo, estavam vivos os protagonistas deste romance - três homens demasiado sensíveis e inteligentes para poderem viver uma vida normal, com mais dentro de si do que podiam carregar.
Apesar de separados por milhares de quilómetros, as suas vidas revelam curiosas afinidades e estão marcadas, de forma decisiva, pelo ambiente em que cresceram e pelos lugares, nem sempre reais, onde se fizeram homens. Mas, enquanto os seus contemporâneos se deixaram atravessar pela visão trágica dos cometas, estes foram tocados pelo génio e condenados, por isso, a transformar o mundo. Cem anos depois, ainda não esquecemos nenhum deles.
Escrito numa linguagem bela e poderosa, que é a melhor homenagem que se pode fazer à literatura, No Meu Peito não Cabem Pássaros é um romance de estreia invulgar e fulgurante sobre as circunstâncias, quase sempre dramáticas, que influenciam o nascimento de um autor e a construção das suas personagens."

 "Karl (Kafka) é um imigrante desajustado na enorme e impessoal Nova Iorque, solitário e em busca de referências no caos em que sobrevive. Jorge (Borges) é uma criança inadaptada e depois um adulto desiludido, não conseguindo encontrar lugar no mundo terrreno para os universos fantásticos que lhe povoam a mente. Fernando (Pessoa) é uma criança doente na casa lisboeta das tias e um adulto inconformado que vive um romance puramente intelectual com alguém que comunica consigo através das próprias palavras dos seus versos.
No entanto, este livro é muito mais do que uma evocação de três vultos literários, das suas vidas e obras. Esse é apenas o enquadramento, a moldura. Essas são as linhas que vão ser preenchidas pelo Autor com reflexões sobre a vida, a morte, o amor, o ódio, o medo, as relações humanas, os traumas, as recordações, a infância, a idade adulta."



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