Para o J, participante no CONCURSO NACIONAL DE LEITURA - prova concelhia - e para todos os interessados no livro DEIXEM PASSAR O HOMEM INVISÍVEL, de Rui Cardoso Martins, ficam desenhos originais sobre o livro criados por colegas de Artes da HN-2013-14 (ver mais desenhos) e um texto do também crítico e escritor Pedro Mexia.
Lisboa underground
Pedro Mexia
29 de Julho de 2009
"Uma cidade mal feita e engenhosa,
toda ligada debaixo do chão, em camadas de arqueologia e história.
Todos os lisboetas sabem o que acontece
a Lisboa quando chove muito: a cidade fica caótica, com inundações e acidentes,
é o fim do mundo.
Rui Cardoso Martins começa o seu segundo
romance com uma dessas chuvadas diluvianas que se abate sobre Lisboa, e a água
invade tudo durante duzentas e tal páginas: "Escorria pela cidade e mais chegava
pelos veios que desciam das colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas dos
elétricos, numa competição de rios sem nome, ribeiras acabadas de nascer, no
meio das avenidas e praças, entrando grossa e gelada para dentro dos
subterrâneos (...)" (pág. 173).
É para um subterrâneo, mais precisamente
para um tubo de esgoto, que são arrastados dois transeuntes, um advogado cego e
um miúdo de oito anos. Num incrível "tour de force", o romancista
mantém-nos presos nesse cano gigantesco até ao fim, quase sem luz, às
apalpadelas, encontrando apenas ratos, dejetos e ossadas.
É um pesadelo descrito com uma precisão
de linguagem que ajuda a manter intacta a claustrofobia. Engolidos pela terra,
cheios de fome, frio e medo, os dois acidentais companheiros contam histórias
para se manterem vivos: "
(...) o que os podia guiar no espaço e no tempo, e dar-lhes forças, enormes e
incomparáveis com qualquer desafio recente que se lhes colocara, era a
narrativa. Era falarem e contarem coisas um ao outro, e histórias e livros,
tudo o que aparecesse nas suas cabeças" (pág. 72).
O miúdo é muito novo, e tem pouca
história, embora já alguns infortúnios. O adulto, em contrapartida, tem uma
vida inteira de histórias, quase todas ligadas à sua cegueira.
Ele um "homem invisível"
(corruptela de "invisual") atormentado pelo desastre que o cegou em
pequeno e que o deixou longe do mundo. António, o cego, não é uma alegoria, e
faz questão de o garantir, nada de cegueiras metafóricas, ele é um homem que
não vê, que já não vê, e que recusa paternalismos e piedades. Os pais andaram
em médicos e curandeiros, até que ele perdeu a esperança, pelo menos a
esperança de voltar a ver, porque ele tem mais esperança do que as pessoas que
veem.
Rui Cardoso Martins, que conhecemos como
atento cronista e repórter de tribunal, joga com os clichés sobre ceguinhos a
vender lotaria e depois fala da velocidade com que os cegos andam e que não
sabemos bem qual é, da sua obsessão com a limpeza, os joelhos que os guiam
entre obstáculos, a lascívia do seu toque. Se há alguma alegoria nestes cegos é
apenas na medida em que Lisboa é mostrada como uma cidade em dois mundos: o
visível e o invisível. E, como na crença religiosa, o invisível é o mais
importante.
O invisível aqui é a Lisboa
"underground", a Lisboa de boqueirões, valas comuns, águas pluviais,
passagens secretas, estacas. É uma Lisboa que os lisboetas vão descobrindo a
cada pequena catástrofe, a cada obra nova. Lisboa é uma cidade ao mesmo tempo
mal feita e engenhosa, toda ligada debaixo do chão, em camadas de arqueologia,
de história, de higiene pública.
Rui Cardoso Martins convoca o Grande
Terramoto, as cheias de 1967, os incêndios, todas as tragédias de uma cidade
que tem no seu código genético um grande terramoto futuro, o terramoto que vai
ser a sua destruição. É pois um tom catastrófico, o deste romance, que se
afasta da tragicomédia autobiográfica e regionalista do muito recomendável
"E se eu gostasse muito de morrer" (2006).
As personagens principais estão
aprisionadas, mas "Deixem passar o homem invisível" vai percorrendo
Lisboa, por cima e por baixo. De São Sebastião ao Cais das Colunas, é uma
viagem por uma perigosa cidade de túneis, às vezes tão infecta como a
"Cloaca Máxima" da Roma Antiga. Tal como os túneis, as histórias das
pessoas estão todas ligadas, mesmo a daqueles dois sinistrados, e se o
romancista força um pouco a nota, também consegue tornar pungente essa
correspondência entre o invisível material e o invisível da alma. Alma,
diga-se, num sentido estritamente materialista, pois são incontáveis as
referências céticas e cáusticas à religiosidade, quase sempre vista como um
lastro invisível de crendices num país sofredor. Há uma passagem notável em que
uma personagem secundária (e não totalmente conseguida) desmonta todos os
milagres atribuídos a Cristo. É um mágico, esse homem, e acredita mais em
Houdini do que em Jesus, mas ainda assim introduz a necessidade de um milagre,
sem o qual nada faz sentido.
Enquanto os bombeiros trabalham, durante
duzentas páginas, enquanto os protagonistas sobrevivem, durante duzentas
páginas, é sobre este milagre, possível ou impossível, que vamos pensando: "O dia chegara a
Lisboa, como sempre. Fenícios, cartagineses, romanos, muçulmanos, cristãos nas
margens do Tejo olhavam o sol a tocar a fortificação da colina, todas as manhãs
de todos os séculos (...), aqui em baixo os comerciantes abasteceram os navios
do Império romano, o necrotério debaixo do banco comercial, caves de pedra
grossa na Rua da Conceição, descobertas em 1755, uma vez por ano bombeia-se a
água e descemos às termas romanas da Baixa, que não são termas, se calhar
guardavam pasta de peixe e ânforas. Mas as águas, dizia o povo, curavam a
cegueira, uma nascente brotou ali, quente, sulfurosa, no dia do Grande
Terramoto. Quando a terra parou, e o maremoto retrocedeu, e o fogo se
extinguiu, os cegos de Lisboa passaram a ir lá molhar os olhos, ainda hoje há
excursões de cegos, cada um acredita no que quer, Deus distribuiu esperanças
infundadas, e outras razoáveis, é por isso que as pessoas vivem à espera do que
lhe falta acontecer" (pág. 217).
Enquanto esperamos, acontece tudo e não
acontece nada: anotações jornalísticas exatas, compaixão humanista, farpas ao
estado da Justiça. E fragmentos, trocadilhos, evocações tristes, uma existência
sempre à espera de um milagre. Nem que "milagre" seja o nome que nós
damos aos truques."
António, também conhecido nas suas costas por aquele advogado que é cego, ou aquele advogado invisual, ou aquele ceguinho que tirou advocacia, depende de quem o via e a que distância, visitava a Igreja de São Sebastião da Pedreira pela segunda vez na vida.
António tinha hábitos bizarros como gostar de arte e ir a exposições, e juntara durante anos argumentos para dizer como era isso possível no seu caso, até que os abandonou porque, concluiu, quem precisa da explicação não merece ouvi-la.
Algumas questões a discutir:
·
António e João vão
criando um sentimento de amizade muito profundo mas sem saberem que as suas
vidas já se tinham cruzado anteriormente. O que aconteceu, afinal?
·
Serip, mágico,
ilusionista e filósofo, é uma personagem bastante peculiar
e contribui para o desenvolvimento da história. Como?
·
Este livro
também pode ser visto como de crítica e ironia à nossa sociedade, costumes e à forma
de viver do Homem atual?
·
O Título – é um
trocadilho, um paradoxo. Tem algum significado especial?
·
Que preocupação
houve ao retratar este cego?
·
O livro é uma
metáfora sobre Portugal - um país sofredor que tenta sobreviver?
·
O livro é uma
parábola sobre a condição humana em geral?
SABER MUITO + ("A Vida Triunfa"-viagem com o autor-jornalista Alexandra Lucas Coelho)
SABER MUITO + ("A Vida Triunfa"-viagem com o autor-jornalista Alexandra Lucas Coelho)
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