Já haviam passado 21 anos
desde o desaparecimento de D. João de Portugal, meu amo, na batalha de
Alcácer Quibir. A batalha que mudou tanto a minha vida como a de D.
Madalena, dama que sempre cuidei após aquela fatídica batalha e que ao
fim de sete anos se casou com Manuel de Sousa, um honroso fidalgo
português.
Hoje encontrei D. Madalena murmurando algo sobre o
livro que tinha pousado a seu lado. Ela falou comigo para não falar com
Maria sobre coisas menos próprias para a sua idade, pois tinha receio de
lhe suscitarem mais curiosidade e sabia que aquela menina me tinha em
muito boa consideração.
Posto isto, revelei-lhe que Maria era muito
especial para mim e que desde cedo ganhei um carinho especial por ela,
pois à semelhança de D. João de Portugal, fui eu que eduquei aquela
donzela que a meu ver não sabia de nada que não lhe fosse merecido
saber. No decorrer da discussão acabei por magoar D. Madalena, ao
ter-lhe dito que Maria era digna de ter nascido em melhor estado, num
ato impulsivo guiado pela minha consideração por aquela menina. D.
Madalena disse que me tinha em grande louvor e que após o
desaparecimento de D. João de Portugal viu em mim um amparo. Disse
também que durante os sete anos de viuvez nunca desistira de procurar o
meu amo sem se poupar a esforços, mas agora, 21 anos depois de seu
desaparecimento e 14 após casar com Manuel de Sousa não acreditava na
volta de meu senhor, apesar da carta escrita por ele, carta essa que me
está tão presente na mente que é impossível esquecer aquelas palavras,
“vivo ou morto, Madalena, hei de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste
mundo”.
Após esta discussão, Maria chegou diante de nós perguntando pelo
romance que lhe havia prometido tendo eu reduzindo as suas esperanças no
regresso de D. Sebastião, conforme me tinha pedido D. Madalena, tendo
posteriormente me despedido de Maria que estava a ferver em febre e me
retirado.
Manuel de Sousa regressou hoje de
Lisboa com notícias de que saíra uma comitiva de fidalgos e escudeiros
em direção à vila. Eram os governadores que saíram de Lisboa para fugir
aos ares da peste e que tinham escolhido como aposentadoria o palacete
de Manuel. Sabendo disso, Manuel de Sousa ordenou que todos saíssemos
daquela casa antes da chegada da comitiva e que nos movêssemos para a
casa de D. João de Portugal, casa esta que trazia más memórias a
D. Madalena, mas que era a única opção disponível naquele momento. Antes de
deixar a casa, Manuel de Sousa tomou a honrosa atitude de incendiar a
sua própria casa para que os governadores não a ocupassem, como exemplo
aos outros fidalgos portugueses.
Hoje, passados
oito dias da nossa chegada à residência do meu amo, Maria pediu para
falar comigo. D. Madalena não dormia desde a nossa chegada e aquela era a
primeira noite de descanso que encontrava. Maria disse-me que sempre que
fechava os olhos tinha pesadelos com as chamas e o fumo que devastaram a
sua casa e que ficava aterrorizada ao pensar que o facto do quadro de
seu pai ter ardido representaria a vinda de um mal maior sobre ele.
Maria tentava animar sua mãe, embora acreditasse fielmente nisso e que
para além dessa desgraça cair sobre seu pai, também cairia por sua mãe.
Claro que tudo o que Maria me disse me deixou inquieto, mas mantive uma
postura forte para a tentar tranquilizar. Depois disso, Maria apontou
para o retrato do meu amo e perguntou quem era aquela figura, tendo eu
respondido que era um dos senhores da casa de Vimioso, com uma grande
angústia minha, mas era necessário para não lhe aguçar mais o espírito e
a curiosidade. Maria com a sua perspicácia percebeu que não lhe dizia a
verdade e acabei por lhe dizer que era de um cavaleiro da família de
outro amo meu e quando me perguntou seu nome percebeu a minha
hesitação e pediu que me calasse para não lhe mentir. Tentei mudar o
rumo da conversa, mas sem sucesso e Maria continuou a apreciar os
retratos e a questionar-me acerca deles.
Sem que eu desse conta, Manuel
de Sousa entrou e disse que aquele era D. João de Portugal, um honrado
fidalgo e valente cavaleiro. Mais tarde encontrei Maria, D. Madalena,
Manuel de Sousa e Frei Jorge na sala. D. Madalena encarregou-me de
acompanhar Maria e Manuel a Lisboa, pois Madalena ainda não estava bem e
Maria estava ansiosa por conhecer a sua tia, D. Joana.
Hoje
estou muito preocupado com Maria. Não está nada bem e anda sempre a
ferver em febre, sinto que está tão fraca… Mas recebi notícias de Frei
Jorge de um contacto que me daria informações sobre o meu amo, o meu D.
João! Assim que o Irmão de quem Frei Jorge me tinha falado veio ao meu
encontro, eu senti que o meu D. João de Portugal estava vivo!
Mas
ao mesmo tempo percebo que tudo o que eu sempre quis e sempre esperei
na minha vida não passava de uma mera ilusão. O amor que eu julgava
inquestionável e infinito por meu amo tinha sido superado pelo amor que
ganhei por aquela menina. O amor desta última filha é mais forte e
venceu, venceu, apagou o outro.
Após esta reflexão, entrou o romeiro que
perguntou para quem eram as minhas preces, se eram para o meu antigo
amo, mas eram obviamente para Maria, a única pessoa por quem eu consigo
rogar. A voz do romeiro de imediato me foi familiar e eu mal podia
acreditar que estava perante o meu amo D. João de Portugal, 21 anos
depois de desaparecer. Apenas o consegui reconhecer devido à sua voz
pois a sua aparência estava completamente mudada. Contou-me a sua
história e o porque do seu desaparecimento, mas nem isso mudou o que
sentia, mesmo depois de dizer que Deus apenas não pôs termo à sua vida
para ele poder voltar a falar comigo pelo menos uma vez. Depois de
falarmos, pediu que dissesse que o peregrino era só fachada e que
nada passava de obras dos inimigos de Manuel de Sousa, que esquecesse o
sucedido e que fosse feliz.
Senti-me horrivelmente por ter de negar meu amo e
senti-me culpado por o trair no momento em que esperava contar com toda
a minha fidelidade, mas D. João já não era o meu amo de maior amor. Ele
pediu-me um abraço e foi-se embora afirmando que ainda iria ter
notícias dele.
Depois da saída do meu amo, D. Madalena chamava
por Manuel e dizia que a decisão que iriam tomar estava a ser
precipitada. Madalena pediu que fosse ter com Maria que não se
encontrava nada bem. Pouco depois, a minha pobre menina acabaria por me
morrer, deixando no meu coração um vazio impossível de
preencher. Pela segunda vez na minha pobre vida tinha perdido a pessoa
que mais desejava que vivesse.
Pedro F. D.
11ºB
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