terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Capítulo I (início)



O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
No Alentejo, pela Extremadura, atravéz das duas Beiras, densas sebes ondulando por colina e vale, muros altos de boa pedra, ribeiras, estradas, delimitavam os campos d'esta velha familia agrícola que já entulhava grão e plantava cepa em tempos d'el-rei D. Dinis. A sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. Entre o Tua e o Tinhela, por cinco fartas legoas, todo o torrão lhe pagava fôro. E serrados pinheirais seus negrejavam desde Arga até ao mar de Âncora. Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elíseos, nº 202.

Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto a quem chamavam em Lisboa o "D. Galião", descendo uma tarde pela travessa da Trabuqueta, rente de um muro de quintal que uma parreira toldava, escorregou numa casca de laranja e desabou no lagedo. Da portinha da horta saía nesse momento um homem moreno, escanhoado, de grosso casaco de baetão verde e botas altas de picador, que, galhofando e com uma força fácil, levantou o enorme Jacinto – até lhe apanhou a bengala de castão de ouro que rolara para o lixo. Depois, demorando nele os olhos pestanudos e pretos:
— Oh Jacintho Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?
E Jacinto, aturdido e deslumbrado, reconheceu o Senhor Infante D. Miguel!
Desde essa tarde amou aquele bom Infante como nunca amara, apesar de tão guloso, o seu ventre, e apesar de tão devoto o seu Deus! Na sala nobre da sua casa (à Pampulha) pendurou sobre os damascos o retrato do «Seu Salvador», enfeitado de palmitos como um retábulo, e por baixo a bengala que as magnanimas mãos reaes tinham erguido do lixo. Emquanto o adorável, desejado Infante penou no desterro de Vienna, o barrigudo senhor corria, sacudido na sua sege amarela, do botequim do Zé-Maria em Belém à botica do Palácio nos Algibebes, a gemer as saudades do "anginho", a tramar o regresso do "anginho". No dia, entre todos bendito, em que a "Pérola" apareceu á barra com o Messias, engrinaldou a Pampulha, ergueu no Caneiro um monumento de papelão e lona onde D. Miguel, tornado S. Miguel, branco, de auréola e asas de Arcanjo, furava de cima do seu corcel d'Alter o Dragão do Liberalismo, que se estorcia vomitando a Carta. Durante a guerra com o «outro, com o pedreiro livre» mandava recoveiros a Santo Tirso, a S. Gens, levar ao Rei fiambres, caixas de doce, garrafas do seu vinho de Tarrafal, e bolsas de retroz atochadas de peças que ele ensaboava para lhes avivar o ouro. E quando soube que o senhor D. Miguel, com dois velhos bahus amarrados sobre um macho, tomára o caminho de Sines e do final desterro - Jacinto Galião correu pela casa, fechou todas as janelas como em um luto, berrando furiosamente:
—Tambem cá não fico! tambem cá não fico!
Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele Rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos! Embarcou para França com a mulher, a senhora D. Angelina Fafes (da tão falada casa dos Fafes da Avelã); com o filho, o Cintinho, menino amarelinho, molezinho, coberto de caroços e leicenços; com a aia e com o moleque. Nas costas da Cantabria o paquete encontrou tão rijos mares que a senhora D. Angelina, esguedelhada, de joelhos na enxerga do beliche, prometeu ao Senhor dos Passos d'Alcantara uma coroa de espinhos, de ouro, com as gotas de sangue em rubis do Pegu. Em Bayonna, onde arribaram, Cinthinho teve icterícia. Na estrada d'Orleans, numa noite agreste, o eixo da berlinda em que jornadeavam partiu, e o nédio senhor, a delicada senhora da casa da Avelã, o menino, marcharam três horas na chuva e na lama do exílio até uma aldeia, onde, depois de baterem como mendigos a portas mudas, dormiram nos bancos duma taberna. No Hotel dos Santos Padres, em Paris, sofreram os terrores dum fogo que rebentara na cavalhariça, sob o quarto de D. Galião, e o digno fidalgo, rebolando pelas escadas em camisa, até ao pátio, enterrou o pé nu numa lasca de vidro. Então ergueu amargamente ao céu o punho cabeludo, e rugiu:
—Irra! É demais!
Logo nessa semana, sem escolher, Jacinto Galião comprou a um príncipe polaco, que depois da tomada de Varsóvia se metera frade cartuxo, aquele palacete dos Campos Elísios, nº 202. E sob o pesado ouro dos seus estuques, entre as suas ramalhudas sedas se enconchou, descançando de tantas agitações, numa vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros de emigração (o desembargador Nuno Velho, o conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, dumalampreia de escabeche que lhe mandára o seu procurador em Monte-mór. Os amigos pensavam que a senhora D. Angelina Fafes voltaria ao reino. Mas a boa senhora temia a jornada, os mares, as caleças que racham. E não se queria separar do seu Confessor, nem do seu Médico, que tão bem lhe comprehendiam os escrúpulos e a asma.
—Eu, por mim, aqui fico no 202 (declarara ela), ainda que me faz falta a boa água de Alcolena... O Cinthinho, esse, em crescendo, que decida.
O Cinthinho crescera. Era um moço mais esguio e lívido que um cirio, de longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas; de noite, sem dormir, por causa da tosse e de sufocações, errava em camisa com uma lamparina através do 202; e os criados na copa sempre lhe chamavam a "Sombra". Nessa sua mudez e indecisão de sombra surdira, ao fim do luto do papá, o gosto muito vivo de tornear madeiras ao torno: depois, mais tarde, com a melada flor dos seus vinte annos, brotou nele outro sentimento, de desejo e de pasmo, pela filha do desembargador Velho, uma menina redondinha como uma rola, educada num convento de Paris, e tão habilidosa que esmaltava, dourava, concertava relógios e fabricava chapéus de feltro. No outono de 1851, quando já se desfolhavam os castanheiros dos Campos Elísios, o Cinthinho cuspilhou sangue. O médico, acarinhando o queixo e com uma ruga seria na testa imensa, aconselhou que o menino abalasse para o golfo Juan ou para as tépidas areias de Arcachon.
Cinthinho porém, no seu aferro de sombra, não se quiz arredar da Terezinha Velho, de quem se tornara, através de Paris, a muda, tardonha sombra. Como uma sombra, casou; deu mais algumas voltas ao torno; cuspiu um resto de sangue; e passou, como uma sombra.
Três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.

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