terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O último Eça



Se ainda não têm o livro, comprem esta edição, porque inclui um prefácio muito interessante de Rui Zink, que aqui reproduzo, em parte. 
Editor: Quidnovi
Prefácio:  Rui Zink

Preço: 6,01 €. Podem comprar on-line em: Bulhosa - Books & Living

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O livro onde fui feliz (Rui Zink)

O tema de A Cidade e as Serras é a felicidade. E o que Eça de Queirós nos fornece não é uma chave para a encontrarmos – isso é problema nosso – mas o relato, singelo, de como um homem, «o meu bom príncipe Jacinto», descobriu a sua. É um romance delicioso e terno, onde o humor não serve a feroz sátira mas a amável comédia – e toda a irritação é bonacheirona, até quando o narrador Zé Fernandes se exaspera por embater o joelho num livro «que velhacamente se aninhara entre a parede e os colchões». De resto, desafio o mais trombudo dos leitores a conseguir ler página e meia – a página e meia inicial! – sem que um sorriso deleitado lhe comece, como quem não quer a coisa, a torcer os cantos dos lábios. Este é o mais perfeito, mas também o mais simples romance de Eça. A história de um homem que vive em Paris, no paraíso da Civilização, até descobrir que a fonte que lhe acudirá à sede é outra. Mais simples de facto não há. O romance chama-se A Cidade e as Serras e, até meio, estamos na Cidade, depois nas Serras. Isto, enfim, com uma turbulenta viagem (mais lenta que turbo) de comboio, burro e queijo manchego entre Paris e Tormes. O livro segue uma linha recta. Ou melhor, uma linha ondulante, sinuosa, como o leito de um rio que serenamente corre para o seu destino. Em menos de meia-dúzia de páginas desdobra Eça os antecedentes necessários para justificar que Jacinto nasça em Paris, «no 202 dos Campos Elíseos», e passa logo ao que tem a contar: a transformação de Jacinto de rato da cidade em lebre do campo. Para quem já não é desse tempo, eu explico: acreditem ou não, no final do século XIX a cidade de Paris era o que hoje Nova Iorque, Tóquio, Xangai e, vá lá, Londres representam. Aqui já não temos, como em Eças anteriores, uma comparação triste e desigual entre um país provincianamente pífio e um mundo «lá fora» feito de Gosto e Cosmopolitismo, mas o inverso: em Paris morre-se de enfado lento, em Portugal renasce-se. Este livro pode­ria muito bem chamar-se Regresso a Casa. Duplo, triplo regresso a casa, aliás. Em primeiro lugar do protagonista, que descobre em Tormes a vitalidade perdida e a alegria nunca tida (já para não falar do apetite, o importantíssimo apetetitezinho). Em segundo lugar, regresso físico do autor, que andou muito, demasiado muito, por Paris, Newcastle, Havana. Em terceiro lugar, regresso da alma do autor, que finalmente se reconcilia (já não era sem tempo!) com o país do qual se apartara, do qual quase se divorciara, com o qual tanto – n' As Farpas, no Padre Amara, n' Os Maias – se zangara. Pois é. Há uma volta na vida dos homens, os mais sortudos, que é chegarmos a uma certa idade na qual, depois de anos a fio todos tensos e contraídos, finalmente conseguimos alguma calma e paz connosco próprios. Assim está este Eça, a divertir-se e a divertir-nos, com o mais singelo conto que lhe deu na veneta contar. É uma revisitação do bucolismo, fruto de uma inocência perdida e, depois, readquirida. Em A Cidade e as Serras, Eça - cansado de muito guerrear – faz pois as pazes com o país. Pena que isso aconteça nos últimos anos da sua vida, deixando a parte mais gostosa da escrita – a reescrita, precisamente - a metade. Não sei se ele previa a morte próxima, sei que se sente neste livro um bem-estar, uma felicidade, uma boa disposição contagiantes. Mesmo as personagens risíveis no livro não o são muito – não são ridicularizadas, como outrora os Palmas Cavalões, os Dâmasos Salcedes, os Primos Basílios, os Conselheiros Acácios. Em contrapartida, abundam as pessoas felizes e boas. Jacinto é mimado e poderia ser irritante de tão irritantemente rico, privilegiado e alheado da realidade? Sim, mas até eu - que sou dado a rancores de classe – o aceito como ele é, e gosto dele como é, despassarado e fútil, até crescer – em Tormes, em Portugal – e se tomar (já entrado te) um homem. E, para além de tudo, Jacinto é «bondoso». Este livro abre um mundo onde, se há personagens menores - as figuras de Paris - não há, como diria o Padre Américo, rapazes maus. Ele é «o meu bom tio», «o bom Melchior», «o bom Silvério», «o bom abade de S. José», «o bom Rebelo», «o bom D. Teotónio», «o bom Schopenhauer», o Visconde do Bom Sucesso... E até o narrador não tem problemas em dizer, com a candura de quem vê o mundo sem malícia, «mas concordei, porque sou bom, e nunca desalojarei um espírito do conceito onde ele encontra segurança».   


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Não há uma idade para ler Eça. Qualquer uma é a idade certa, a altura certa, para nele mergulhar. Mas, se não há «altura certa», há uma altura factual, uma data, em que lemos pela primeira vez um dado livro. O prazer da leitura é intemporal? Sim, mas não vivemos (snif) fora do tempo e do espaço. Eu descobri o Eça num momento particular: no meio de crises brutais de asma que me levavam quase todos os dias ao hospital. O que senti quando li pela primeira vez A Cidade e as Serras? Alegria. Consolo nos maus momentos. Descoberta do mundo. Aprendizagem de Portugal. Sabedoria de vida. Salvo erro, foi o meu primeiro Eça, a minha introdução a Eça, o livro que me levou a devorar os outros Eças. Com excepção d' Os Maias, que ficaram mais uns anos a aguardar a minha visita, pois, lamento dizê-lo, era aquilo a que os profissionais do livro chamam um tijolo. Mas A Cidade e as Serras, esse, marchou tinha eu catorze anos. Já não me lembro se foi uma professora que falou com um entusiasmo convincente ou apenas um ar que me deu. Por acaso tínhamos o livro em casa - ajuda sempre que a nossa família tenha livros em casa. Vá lá uma pessoa saber porquê, mas é assim. Morava eu então na Calçada de Sant'Ana, aquela rua que serpenteia colina acima, quase do Rossio até ao Torel. É uma rua lite­rária mas pouca gente sabe isso: lá nasceu a Amália (na Martim Vaz, um afluente da calçada), lá morreu Camões (bem, há lá uma placa colocada em 1867), lá fica uma igrejinha que Eça tornou personagem num ou noutro romance. A calçada desce até uma bifurcação: a da Rua Arco da Graça, que para a direita vai dar ao Rossio e, para a esquerda, desagua uns quarteirões à frente no Hospital de S. José, e naquilo que no Hospital de S. José mais me interessava na altura: as Urgências. A asma é uma doença interessante, porque – tal como o ar – é invisível. Não há marcas exteriores, apenas o efeito. É talvez a doença que mais facilmente pode ser simulada, por esse motivo. Em contrapartida, não é pêra doce. A sensação de falta de ar não é das mais agradáveis. E qualquer asmático sabe que é quando se deita que as coisas pioram. Mas dormir é preciso. Foi, pois, a necessitar de oxigénio que degustei (fui degustando) estas páginas, numa mão-cheia de abafadas noites de Verão. Regressado do cinema, e antecipando mais um chato ataque de asma, ficava na cama a ler até que o sono vencia. Depois, o efémero vencedor era derrotado (interrompido) pela falta de ar, e eu lá me vestia para ir a pé, sozinho apesar dos meus catorze anos, às urgências do hospital de S. José a tomar a minha dose de aminofilina e, de novo a respirar, voltava para a cama pelas cinco da manhã, adormecendo de novo a ler mais umas páginas. O meu avô, que tinha morrido meses antes, e foi tão importante para mim como Afonso da Maia para Carlos, sempre me pareceu um modelo de bondade. E eu magicava: os adultos tendiam a ser cínicos e trocistas - porque sabiam mais coisas da vida que eu, mas o meu avô, que era mais experiente (mais velho), mais sábio (um autodidacta muito lido) e mais zurzido pelas intempéries (preso no Aljube, em 1938), mantinha uma doçura, uma amizade pelo bicho humano que me baralhava as coordenadas. E, com esforço, eu lá concluía: os cínicos de trinta, quarenta anos lá topariam coisas que eu ignorava, mas o meu avô tocava mistérios que eles nem sonhavam. O Eça que aqui nos é dado ler está a afastar-se, aos cinquenta anos, dos homens cínicos e a aproximar-se, com alguma melancolia coberta pelo manto diáfano da alegria, da bondade do meu avô. A vantagem de uma pessoa chegar à idade em que já pode ser prefaciador é que temos uma oportunidade – ou melhor, «uma janela de oportunidade» – para regressar ao livro onde fomos felizes. Fui feliz ao ler adolescente A Cidade e as Serras e feliz fui, agora, ao reler esta maravilha no metro, no autocarro, em cafés, num exame (nada de comiserações, eu apenas vigiava o exame). E sinto-me agora um bocadinho feliz ao acreditar – porque eu também sou bom, caramba – que dentro de segundos alguém vai começar a partilhar a minha experiência.   

 Rui Zink, Prefácio a A Cidade e as Serras, QuidNovi, 2010 (com supressões)

Disponível em  http://olga.wirenode.mobi/page/40

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