segunda-feira, 27 de março de 2023

Gonçao Mendes Ramires e Carlos da Maia

 Republico a edição de dezembro, para refrescar a memória.

Gonçalo Mendes Ramires (Eça de Queirós, A ILUSTRE CASA DE RAMIRES)Biblioteca Nacional: Eça de Queirós

Personagem central do romance semipóstumo de Eça de Queirós, A ilustre casa de Ramires (1900). Para além de ser conhecido pelo nome próprio, Gonçalo é designado também, “naquela sua velha aldeia de Santa Ireneia, e na vila vizinha, a asseada e vistosa Vila Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, (…) [como] «Fidalgo da Torre»” (Queirós, 1999: 73). Remete-se, deste modo, logo no incipit, para um determinado espaço e para uma condição social confirmada na caracterização inicial.

Nela, o discurso do narrador começa por atentar na personagem, mas desloca-se de imediato para dois campos que lhe estão associados: a família e a História em que ela se inscreve. Assim, “Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal” (74). Logo depois, recorre-se a um dispositivo de figuração usual na ficção queirosiana, a analepse: “Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão” (74).

Depois disto, o narrador centra-se na família e descreve os feitos dos Ramires, “em cada lance forte da História de Portugal” (74), particularizando quatro etapas históricas: a da independência e consolidação do Reino, a da expansão, a dos Filipes e a da Restauração, com os Braganças, quando se anuncia a decadência: “Já, porém, como a nação, degenera a nobre raça…” (76). Por fim, chega-se ao protagonista: “Gonçalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro ano” (77).

A partir daqui, a personagem é configurada em função de comportamentos. Nessa “figuração poliédrica”, “é através do que Gonçalo vê, faz, diz, pensa e até sonha que vai ganhando um vulto ficcional onde o riso, mas também a complacência e até a ternura, estão muito presentes” (Monteiro, 2014: 24). Outros traços de caracterização: a ociosidade e a inércia, uma certa debilidade anímica, em contraste com os Ramires do passado, o apelo da temática histórica, traduzido na composição de um conto com “final choroso” (78), a abulia cortada por assomos de generosidade e de chamamento para a escrita.

A escrita da novela constitui um domínio decisivo para a figuração da personagem, por três razões. Primeiro, porque, ao longo desse processo, Gonçalo evolui, repensa a sua vida e o seu legado histórico, com efeitos na interação com as restantes personagens (veja-se a crescente tomada de consciência de um poder simbólico provindo do passado, relativamente ao poder político representado por André Cavaleiro). Segundo, porque a escrita da novela desencadeia reflexões acerca desse processo propriamente dito, enquanto trabalho e técnica (o tratamento das fontes, o trauma do plágio, o árduo labor estilístico, a expectativa da receção pelo público, etc.; cf. Reis, 1999: 181-183), tudo isto conferindo à escrita o poder de transformar quem a empreende (cf. Bittencourt, 2017: 222-228). Terceiro, porque o passado que emerge da “Torre de D. Ramires” deixa de ser uma mera evocação literária; progressivamente, esse passado interpela Gonçalo e o seu tempo, no tocante a uma certa falência de valores, na vida de um fidalgo em crise e de uma família em decadência.

LER ARTIGO COMPLETO em DICIONÁRIO DE PERSONAGENS DA FICÇÃO PORTUGUESA 

 

Carlos da Maia (Eça de Queirós, Os Maias)Cine Lusco Fusco: “Os Maias” | Consulado Geral de Portugal em São Paulo

Carlos Eduardo da Maia é uma das figuras centrais d’Os Maias (1888), sendo filho de Pedro da Maia e de Maria Monforte e neto de Afonso da Maia e de Maria Eduarda Runa. À exceção da educação de matriz britânica, dirigida pelo avô e representada no capítulo III do romance, Carlos protagoniza o percurso do jovem português rico e de origem aristocrática, na segunda metade do século XIX: estudos em Coimbra, viagem pelo estrangeiro, vida em Lisboa com vagos projetos de trabalho, dispersão de interesses, presença regular em episódios sociais e ociosidade generalizada. Em termos cronológicos, o trajeto da personagem, na ação do romance e na história da família Maia, situa-se sobretudo nos anos de 1875 a 1877, com um regresso em 1887, correspondendo ao epílogo do relato.

Na Lisboa romântica e culturalmente medíocre daqueles cerca de dois anos, Carlos da Maia destaca-se pela sofisticação do gosto. Descrito como uma figura elegante, de ar saudável, com barba castanha, cabelos negros e os olhos dos Maias, Carlos lembra um “belo cavaleiro da Renascença” (Queirós, 2017: 143); a isto junta-se um comportamento marcado pela inconstância e pelo diletantismo, em harmonia com a propensão esteticista que se projeta na decoração da casa do Ramalhete. Essa decoração inclui opções de gosto que explicam a reação do procurador da família: “Os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico — mas de dançarina!” (65). No começo da vida adulta, os propósitos pessoais de Carlos pareciam indicar que ele viria a concretizar as expectativas do avô e aquilo para o que a sua formação o preparara; no entanto, vai-se gradualmente revelando a incapacidade para qualquer compromisso produtivo, desde a profissão de médico até aos projetos culturais. E assim, Carlos “ocupava‑se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bric‑à‑brac”, invariavelmente cultivando aquela “fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia falar duma estátua ou dum poeta” (173).

No plano pessoal e, em particular, no campo sentimental, Carlos não consegue manter uma relação estável. A comparação com D. Juan, feita de forma casual por João da Ega, encerra, afinal, um sentido premonitório: “Tu és simplesmente, como ele, um devasso; e hás de vir a acabar desgraçadamente como ele, numa tragédia infernal!” (195). Assim, é significativo que a relação amorosa com Maria Eduarda (a única que parecia duradoura) se revele impossível e destrutiva, pondo em causa a continuidade da família. Vários elementos devem ser destacados nesta relação, dentre eles o olhar de Carlos e a forma como ele molda a figura e a personalidade de Maria Eduarda; o que esse olhar absorvente e possessivo retém são cores, formas e movimentos, conformando a imagem de uma mulher que surge a Carlos “com uma carnação ebúrnea, bela como uma deusa, num casaco de veludo branco de Génova” (224). A intensidade com que Carlos vive um amor que exige a fuga dos amantes (afinal não consumada) e o desgosto do avô revela um egoísmo com consequências extremas: depois de conhecer o laço familiar que o une a Maria Eduarda, Carlos mantém a relação incestuosa por um breve tempo, resultando dessa fraqueza moral  duas vítimas, a irmã e o avô. Em relação a ele próprio, confirma-se um destino de fracasso, já anunciado no plano profissional e acentuado pela falência moral que atinge a personagem e o que resta da família dos Maias.  Confirma-se, por fim, o estigma de perdição que fora sugerido por “aqueles irresistíveis olhos do pai” (143), na breve caracterização já mencionada.

LER ARTIGO COMPLETO em  Dicionário de Personagens de Eça de Queirós

Sem comentários: