Republico a edição de 17 de dezembro, para refrescar a memória.
"OS MAIAS", de EÇA DE QUEIRÓS
Os Maias constituem um texto-charneira na evolução estilística e ideológica de Eça, operando a consolidação da passagem entre o período revolucionário naturalista da década de 70 e o da década de 90, de inspiração humanista. A expressão «humanismo» significa aqui o ponto de vista de um autor que planeia colocar-se epistemologicamente acima dos grupos sociais em contenda, dos interesses conjunturais da sociedade, visando abarcar a Sociedade e a História como um todo, uma espécie de olhar majestático por que conclui que o que acontece atualmente já de modo semelhante acontecera em outras épocas (tempo) e em outras sociedades (espaço). Assim, o humanismo conduz, normalmente, a um certo relativismo comparativista entre épocas e sociedades diferentes e este relativismo conduz, por sua vez, a um certo ceticismo, que serão justamente o relativismo e o ceticismo presentes n’Os Maias.
Assim, neste romance, Eça recobre tanto o processo realista de construção literária quanto o processo humanista de observação social. Trata-se de, retratando os grupos sociais afrancesados pós-Regeneração e a sociedade lisboeta fontista, denunciar igualmente os aleijões sociais da mentalidade portuguesa finissecular oitocentista, evidenciando geneticamente os efeitos de uma educação europeia (Carlos da Maia) comparativamente com os efeitos de uma educação monárquica tradicional (Afonso da Maia) e de uma educação burguesa portuguesa.
Se Eça, quando começou a escrever Os Maias, ainda era realista, quando o findou já assumia a pele de um humanista que contemplava a sociedade portuguesa do século XIX (as três gerações da família Maia) do ponto de vista da totalidade da sua experiência como jovem romântico (década de 1860), como participante numa intervenção social no sentido da transformação da mentalidade cultural de Portugal (Geração de 70), como feroz crítico de costumes (As Farpas, escritas com Ramalho Ortigão), e, agora, como observador crítico e reprovador da evolução da sua própria geração enquanto motor de uma revolução cultural nos costumes e na mentalidade dos portugueses («Falhámos a vida, menino!», diz Carlos da Maia para Ega). Assim, Os Maias constitui-se como um romance profundamente cético, tão cético quanto o pode ser um romance humanista, isto é, um romance que não disfarça nem cala os defeitos e as virtudes do homem, neste caso, do homem urbano português do século XIX, defeitos para os quais ao romancista já lhe falta a vontade de regeneração, e virtudes que sempre sabem a compensações.
Escrevendo Os Maias, Eça problematiza setenta anos de liberalismo constitucional, evidenciando, a partir de um olhar francês, tanto o progresso civilizacional existente em Portugal quanto a vacuidade das elites políticas e intelectuais. Neste sentido, sob a história de amor incestuosa entre Carlos e Maria Eduarda, a maioria dos capítulos d`Os Maias e a maioria das personagens encerram uma lição sobre os momentos da história contemporânea de Portugal, mas em nenhum capítulo, como em nenhuma personagem, Eça propõe uma lição dogmática, definitiva ou exclusiva sobre o futuro de Portugal – é esta a lição do novo humanismo crítico de Eça, a certeza de que Portugal, monárquico ou republicano, pobre ou rico, moderno ou arcaico, dura (como escreve em 1890).
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Imagem: fotograma do filme Os Maias, de João Botelho
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