terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Eugénio de Andrade


 Retrato de Eugénio de Andrade, na sua juventude

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No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves







                             Eugénio de Andrade, in Os Amantes Sem Dinheiro






Correção
1.

- Referir o tom narrativo relacionado com a utilização do pretérito perfeito, sobretudo na segunda parte do poema (vv. 16-35) como quem conta uma história, de que são exemplo «esqueceste muita coisa;/ esqueceste que as minhas pernas cresceram,/que todo o meu corpo cresceu» ou a evocação da narrativa de infância que a sua mãe lhe contava - «Era uma vez uma princesa/no meio de um laranjal...»

- Referir e exemplificar o pseudo-diálogo estabelecido pelo sujeito poético com a mãe ou a memória dela, marcado pelo vocativo - «mãe» -,  pelo uso do discurso direto, dirigido a um «tu» e do travessão, de que são exemplos: «Olha - queres ouvir-me? -» ou «Mas - tu sabes - ».

2.

- Identificar todas as formas de pretérito perfeito («perdi», «esqueceste», adormeceu»...) e de presente do modo indicativo («sou», «oiço», «sabes»)

- Relacionar com a recordação do tempo da infância que, no presente, o sujeito poético realiza, em contraste com um presente, tempo de partir, ainda que levando as recordações.

3.

- Identificar a anáfora - «Tudo porque» e os
 versos a que está associada;
- Relacionar com a expressão inical relativa
à traição afetiva, visto que a anáfora
introduz versos que funcionam
como explicação/justificação para o «...eu sei
que traí».


4.

- Atribuir uma interpretação simbólica a «moldura», enquanto retrato da infância, tempo de criança, «aprisionamento», confinação a um espaço físico - a casa, e afetivo - a proteção da mãe;

- Dar conta da progressiva libertação do sujeito, traduzida pelas sucessivas referências à moldura, desde o «porque perdi as rosas brancas/que apertava junto ao coração/no retrato da moldura» até ao «Eu saí da moldura».

5.
     Explicar os versos, de modo a dar conta da ideia de crescimento, físico e afetivo, e consequente fuga para voos mais altos, para desafios mais exigentes e perigosos.

   6.
  Identificar a metáfora e associá-la à ideia de liberdade, voo, perigosidade ou outra interpretação que respeite a lógica do texto.

     7. Referir os diferentes tipos de estrofe - quatro dísticos, etc...
    Retrato de Eugénio de Andrade

      8. Associar o último dístico à despedida, marcada pela fórmula - «Boa noite»; o sujeito deixa as
memórias de infância, traduzidas pelas «rosas», e parte para ser homem, livre...ou outra interpretação que respeite a lógica do texto.
II
1.     Presente do Indicativo, na forma verbal «sei».
Pretérito perfeito simples do modo indicativo, no caso de «traí».
2.     Oração subordinada substantiva completiva.
3.     As formas verbais soubesses  e enchesses estão no pretérito imperfeito do modo conjuntivo.
4.     Oração subordinada adverbial condicional; como exprime uma condição, tem um carácter hipotético e, logo, exige uma forma verbal no modo conjuntivo, neste caso no imperfeito.
5.     Os elementos que, para além dos tempos verbais, garantem a coesão temporal são o «às vezes» e, principalmente, o «ainda». Relacionam-se com o confronto entre o passado e o presente, e o modo como as memórias do passado ainda se prolongam, não tendo abandonado o poeta, apesar de ele ter crescido e ser tempo de partir.
6.     Todos os elementos expressos pertencem ao predicado, neste caso constituído pelos elementos: verbo - «deixo»; complemento indireto - «te»; complemento direto - «as rosas».
7.     O sujeito é nulo subentendido, pois não está expresso, mas é identificável como «eu», recuperado a partir da forma verbal de 1ª pessoa - «Deixo».
8.     Oração principal/subordinante - «as palavras (…) são duras».
Oração subordinada adjetiva relativa (com antecedente) restritiva - «que te digo» («que» as quais palavras; o «que» tem como antecedente «palavras»).
9.     O elemento «duras» é predicativo do sujeito (neste caso, exercido por um adjetivo que acompanha o verbo copulativo – ser: «são»).
10.   O elemento com a função de vocativo é «mãe».  O valor da sua repetição está associado à ideia de dedicatória, ou ajuste de contas afetivo ou despedida ou explicação...  ...ou outra interpretação que respeite a lógica do texto.

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