quarta-feira, 27 de maio de 2015

Cesário, «tanta crueldade e tantas injustiças»




Poema «Nós»

I
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E a Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre, 
Fugiu da capital como da tempestade.
 
Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós tivéramos sarampo).
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas 
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!
 
Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: 
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; 
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.
 
Na parte mercantil, foco da epidemia, 
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
 A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
 
Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados,
 Rodavam sem cessar as seges dos enterros. 
Que triste a sucessão dos armazéns fechados! 
Como um domingo inglês na city, que desterros!
 
Sem canalização, em muitos burgos ermos 
Secavam dejecções cobertas de mosqueiros. 
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros, 
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
 
Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos. 
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros armamentos.
 
Porém, lá fora, à solta, exageradamente 
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente, 
Ganhava imenso com a enorme mortandade!


 Jean François Millet, “As Respigadoras”

II
 Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos, 
Numa opulenta fúria as novidades todas, 
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.
 
Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.
 
Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!
 
E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!

 III
Tínhamos nós voltado à capital maldita,
Eu vinha de polir isto tranquilamente,
Quando nos sucedeu uma cruel desdita,
Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

Uma tuberculose abria-lhe cavernas!
Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo!
E  eu sempre lembrarei, triste, as palavras ternas,
Com que se despediu de todos e do mundo!

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!
Não sei dum infortúnio imenso como o seu!
Vi o seu fim chegar como um medonho muro,
E, sem querer, aflito e atónito, morreu!
 
De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo
Com tanta crueldade e tantas injustiças,
Se inda trabalho é como os presos no degredo,
Com planos de vingança e ideias insubmissas.
 
 E agora, de tal modo a minha vida é dura,
 Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,
Que sinto só desdém pela literatura,
E até desprezo e esqueço os meus amados versos!



Imagem: “As Respigadoras” (in http://www.chinitarte.net/arte/histo13.html)
O pintor Jean François Millet, filho de agricultores pobres pintou muitas cenas representado o trabalho do campo e sobretudo a ceifa.  “As Respigadoras”, óleo sobre tela com 83X110cm de 1857. Neste quadro Millet representou três camponesas a recolher restos de trigo deixado pelo trabalho da ceifa nas terras de um rico agricultor. A cena das mulheres em primeiro plano que recolhem os parcos grãos para alimentar as suas famílias, deixados para trás pelos ceifeiro, contrasta com a fartura dos ricos em último plano. Este quadro é considerado uma das obras-primas do século XIX.

Sem comentários: