terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A ficção da história nacional portuguesa em "A Ilustre Casa de Ramires"

 Torre da Lagariça, a Ilustre Casa de Ramires, está à venda

A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires

Ricardo Ledesma Alonso

(...) Tendo em conta [o] alargado recurso à história portuguesa para apoiar o projeto imperial transafricano, não surpreende que, face à crise do Ultimatum, jornalistas, poetas, historiadores e políticos de todas as opiniões a empregassem de forma sistemática. Os jornais oferecem, em primeiro lugar, um exemplo muito claro da prática. Já em 12 de janeiro de 1890, num artigo intitulado “Infeliz Pátria”, a Gazeta de Portugal – órgão oficial do Partido Regenerador – utilizava o recurso do contraste histórico entre um passado glorioso e um presente deplorável para estabelecer a sua posição de indignação relativamente à incapacidade do governo de se opor aos “usurpadores” britânicos. Segundo o(s) autor(es) do artigo, com a aceitação indolente do “Memorando” os Progressistas tinham lançado “a nossa pátria em uma aventura em que perdemos a única joia que ainda conservamos da nossa herança brilhante, aventura em que perdemos a honra e vimos para sempre desaparecer o nosso prestígio” (Coelho 1996, 80). Uma estrutura de argumentação semelhante pode ser vista no jornal republicano Os Debates, também publicado em 12 de janeiro. Neste outro caso, embora o discurso seja muito mais específico quanto aos momentos do passado em relação aos quais o presente devia ser contrastado – o reinado da dinastia de Avis, o período das descobertas e conquistas ultramarinas, e o período do iluminismo pombalino –, o fundamento argumentativo é idêntico: parte de uma conceção da trajetória histórica portuguesa, desde um passado de “grandeza” e “valentia” até um presente de completa “desonra” e “submissão”:

Dizia-se outrora que antes morrer que má sorte. Dantes, a ficar desonrado, preferia-se morrer. Era no tempo de D. Nuno Álvarez Pereira, de Afonso de Albuquerque, de D. João de Castro e, mais modernamente, do Marquês de Pombal. Era no tempo em que nós eramos grandes, fortes, poderosos, respeitados! Hoje, no tempo destes bandidos que aí poluem todos os sentimentos de honra, todos os princípios de dignidade, todas as noções de brio, a covardia é prudência, o servilismo é sensatez, o medo é tino, a infâmia é juízo, e a coragem, e a valentia, e a dignidade e a honra é loucura! (Coelho 1996, 98)

 (...) a mais notável e complexa contribuição lírica do Ultimatum é sem dúvida Pátria (1896), longo poema de Guerra Junqueiro.

Que é da grandeza heroica do passado,

Que é das torres d’outrora olhando o mar?!...

Blocos no chão, vestidos d’heras,

Ameias, gárgulas, esferas,

Poeiras de sonhos, de quimeras,

Luto, nudez, desolação,

Eis os restos de tantos extermínios,

De tanta dor e tanta maldição!...

Já nem cabe sequer em meus domínios

A magra sombra vã do meu bordão!

Régios palácios, fortalezas,

Mosteiros, campas, catedrais,

Orgulhosos padrões de mil empresas,

Conspurcados de lama e de impurezas,

Entre montes de entulho e silveiras!

Meus impérios distantes divididos,

Minha terra natal inculta e só! (Junqueiro 1896, 176-177)

[excerto]

 O esquema da história portuguesa, poética e extensamente elaborado por Guerra Junqueiro na sua Pátria, é o que de facto está subjacente a todos os outros discursos jornalísticos, doutrinários e literários até agora citados. A ideia é clara: a vida de Portugal estende-se desde um passado medieval em que o seu carácter histórico – heroico, nobre, corajoso, aventureiro – é conformado e desenvolvido até uma modernidade que, a começar pelo período das descobertas e conquistas de além-mar, e chegando ao final do século XIX, leva à traição progressiva da sua natureza original. (...)

 Todavia, no contexto do Ultimatum em que ganhou força a ideia de que só a recuperação da “índole portuguesa” do passado medieval poderia salvar Portugal da sua queda trágica de três séculos, houve alguns intelectuais que se distanciaram dessa perspetiva e apresentaram uma posição crítica face à esquematização herculaniana da história portuguesa e ao nacionalismo exacerbado. Entre eles o vulto mais conspícuo foi Eça de Queirós.5 O conflito de 1890 com a Grã-Bretanha não foi, todavia, o primeiro momento em que Eça deixou claras as suas reticências quanto ao uso político da história nacional (Coelho 1996, 196-197). Já desde As Farpas (1871) tinha criticado fortemente a forma como os seus contemporâneos, políticos e intelectuais, empregavam o passado renascentista para defender o projeto colonial em África. À invocação dos feitos heroicos das descobertas e conquistas de além-mar como justificação e defesa do império, Eça replicava: – “Sim, sim! Bem sabemos! A honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc. Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os havia), que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície – para não vender as salvas de prata que foram dos seus avós?” (Queirós s.d., 108).

[Em Eça de Queirós] encontramos uma condenação mordaz dos “patriotacas, patriotinheiros, patriotadores, ou patriotarrecas” como Pinheiro Chagas, para quem, diz Eça, “a pátria não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna – mas a outra pátria, a que há trezentos anos embarcou para a Índia ao repicar dos sinos, entre as bênçãos dos frades, a ir arrasar aldeias de mouros e traficar na pimenta” (Queirós 1983, vol. 2, 51). Nesses mesmos artigos, Eça também censura a indolência dos referidos “patriotarrecas” perante os males da sociedade portuguesa do presente, dada a sua incapacidade de fornecer qualquer outra solução a não ser cantar os louvores do passado glorioso:

Esse, a sua maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenatas […] Esse, cousa pavorosa! não ama a pátria, namora-a: não lhe dá obras, impinge-lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe que coloque nelas o instrumento do seu renascimento – põe lá (ironia magana!) o quê? Os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça, responde-lhe, torcendo o bigode: – Deixa lá. Tu tomaste Cochim. (Queirós 1983, vol. 2, 51) (...)

  Em O Crime do Padre Amaro e em Os Maias, por exemplo, vemos um romancista que ainda confia na capacidade da história – como realidade passada e como escrita – para fazer a crítica da sociedade portuguesa no último terço do século XIX – tanto que o conhecido final da terceira versão de O Crime e a analepse de abertura de Os Maias parecem ser reproduções simbólicas da ideia decadentista da história recente de Portugal esquematizada por Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo (Reis 1999, 109-111; 2014, 14). Por outro lado, em A Ilustre Casa encontramos, não só uma atualização, mas uma radicalização da ousada e polémica afirmação apontada na carta de 15 de junho de 1885 ao conde de Ficalho, redigida por Eça no contexto da escrita precisamente de A Relíquia (Cunha 1997, 125-126):

À sua carta recebida em Bristol, respondo de Londres, onde vim indagar sobre pedras, nomes de ruas, mobílias e toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha – e não de Jesus, como pedia a devoção, ou de Tibério, como pedia a história – porque ela realmente me pertence, sendo, apesar de todos os estudos, obra da minha imaginação. Debalde, amigo, se consultam in-fólios, mármores de museus, estampas, e coisas em línguas mortas – a História será sempre uma grande Fantasia. (Queirós 2008, I, 370)

A Ilustre Casa de Ramires não é apenas, como é dito frequentemente, uma sátira do romance histórico tradicional e ultrarromântico – uma ridiculização da linguagem arcaica, das reconstruções de espaços, trajes e atitudes medievais, e da inclusão de enredos amorosos entre cavaleiros e donzelas, característicos de obras tais como Eurico, o Presbítero, de Herculano (1844); Ódio Velho Não Cansa (1848), de Rebelo da Silva; ou Novelas Históricas (1869), de Pinheiro Chagas (Pimpão 1972, 561; Earle 1988, 515-519; Marinho 1999, 106; Monteiro 2014, 34). É muito mais do que isso. É sobretudo uma crítica ao fundamento da consciência romântico-historicista da história portuguesa, ou seja, à filosofia ou metanarrativa da história nacional subjacente não só ao romance histórico e à poesia, mas também à historiografia, aos discursos políticos e aos artigos jornalísticos do período pós-Ultimatum. Todavia, o aspeto mais interessante do questionamento desenvolvido por Eça neste romance é, sem dúvida, a sua apresentação: no mais puro estilo irónico (Sacramento 1945, 258), ele configurou-o como uma ficção que acabou por revelar a própria ficcionalidade – a “grande Fantasia”, como dizia na carta ao conde de Ficalho – das esquematizações convencionais do devir histórico português. (...)

Especificamente, o que encontramos nas páginas do livro é o relato de alguns meses da vida – junho-dezembro – de Gonçalo Mendes Ramires, fidalgo da velha aldeia de Santa Ireneia, em que se narra como este último, na sua ânsia de entrar na vida política portuguesa, participa nas eleições para deputado do círculo de Vila Clara (possivelmente uma localidade do distrito de Viseu), e procura ganhar prestígio social escrevendo um romance histórico, A Torre de D. Ramires, estimulado pelo seu antigo colega coimbrão, José Lúcio Castanheiro, editor de uns Anais de Literatura e de História. É importante notar que uma boa parte da narrativa do romance principal é dedicada ao processo de escrita do romance histórico acima mencionado, e que existem também grandes segmentos dos capítulos do livro que fazem referência direta à narrativa que vai configurando Gonçalo. Esta última, por sua vez, é um relato dos feitos guerreiros do antepassado medieval do próprio “Fidalgo da Torre”, Tructesindo Ramires, alferes de D. Sancho I, e que Gonçalo toma a liberdade de “recuperar” – quase literalmente – de um poema escrito pelo seu tio Duarte, O Castelo de Santa Ireneia, e de “completá-lo” a partir do recurso à História de Portugal de Herculano (Queirós 2014, 52, 83, 91).(...)

 Com estas considerações formais em mente, é possível observar, desde as primeiras páginas do romance, a crítica de Eça ao esquema da história portuguesa partilhado pelos seus contemporâneos. Refiro-me à famosa analepse do capítulo I que se segue à cena introdutória em que Gonçalo, sentado na livraria da sua casa senhorial em Santa Ireneia, em frente à mesa em que os “rijos volumes da História Genealógica, todo o Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos”, pensa no romance que está a escrever, A Torre de D. Ramires, isto enquanto olha para a “inspiradora da sua Novela – a Torre, a antiquíssima Torre […] robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X” (Queirós 2014, 39-40) (...)

Ao contrário dos seus predecessores historicistas, o narrador desta analepse desenvolve, de facto, uma paródia subtil que remove o ar de seriedade, seja este épico ou trágico, dos episódios mais relevantes do referido esquema histórico, dando-lhes em vez disso uma tonalidade satírica.

Contudo, a analepse do capítulo de abertura de A Ilustre Casa de Ramires não é o único trecho onde encontramos a apreciação satírica de Eça sobre a história portuguesa. Existem outras secções em que ele ironiza principalmente em relação àquele período medieval que, como já vimos, não só os ultrarromânticos, mas também os seus colegas da Geração de 70, concebiam como a quintessência do heroísmo português, capaz de fazer sair o país do seu declínio secular. É verdade que aquele passado é constantemente lembrado, sobretudo pela voz e o pensamento da personagem de Gonçalo para se encorajar, tanto na sua aventura política e na sua carreira literária, como nas suas relações com os aldeões de Santa Ireneia, usando-o como uma espécie de herança que inundava de heroísmo a sua pessoa – “Mas sentia a grandeza e o préstimo histórico desse arrojo que outrora impelia os seus a arrasar solares rivais, a escalar vilas mouriscas […] dentro do espírito e das expressões do século era pois um bom Ramires – um Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas intelectuais, como competia numa idade de intelectual descanso” (Queirós 2014, 153-154). No entanto, é preciso reconhecer que o medievo é posto também em causa pelo próprio “fidalgo” (Cunha 1997, 123). Talvez um dos momentos mais explícitos desta ambiguidade seja aquele em que, depois de ter concluído a sua Torre de D. Ramires, através de um discurso interior narrativizado, testemunhamos a admiração, mas igualmente as dúvidas e o desgosto, que ele vem a sentir pela história do Portugal medieval, especialmente depois de ter trabalhado na cena final do romance, na morte do Bastardo de Baião – episódio aparentemente histórico que tinha recuperado do poemeto do seu tio Duarte e da História de Portugal de Herculano:

 Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele remoto mundo afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós bravios… Mas quê! Bem receava que sob desconsertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica… Até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando dum charco, o corpo dum homem, e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!... Enfim, o Castanheiro louvara os primeiros capítulos. A multidão ama, nas Novelas, os grandes furores, o sangue pingado: e em breve os Anais espalhariam por todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara mesnadas, arrasara castelos, saqueara comarcas por orgulho e pendão, e afrontara arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. (Queirós 2014, 341-342)

 Como este extrato mostra, por um lado, Gonçalo não só considera o passado afonsino “bestial” e “desumano”, mas até duvida da sua realidade, isto é, que a morte do Bastardo tenha ocorrido como o seu tio e Herculano tinham registado; por outro lado, ele é notoriamente orgulhoso dos seus heroicos antepassados que enfrentaram “arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide”. Eça faz, pois, coincidir numa mesma mente, duas posições em relação ao passado medieval – desprezo e exaltação –, dando assim lugar à perceção de uma conceção ambígua ou irónica da história.(....)

 Enquanto Herculano, Antero, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro tinham configurado a história de Portugal em termos de um “romance”, entendido no seu sentido arquetípico como a narração do triunfo do herói sobre as forças das trevas – pois por detrás das suas críticas à situação presente do seu país, e das referências à trágica queda do herói, esteve sempre a esperança sebastianista de que Portugal triunfaria sobre si próprio e sobre os seus inimigos e seria redimido –, em A Ilustre Casa de Ramires temos outro tipo de enredo. O que observamos na esquematização eciana da vida de Gonçalo-Portugal, portanto da história portuguesa, é antes um “romance satírico” ou, por outras palavras, “uma forma de representação disposta para expor, de um ponto de vista irónico, a fatuidade da conceção romântica do mundo” (White 2014, 9-10). A sátira, aponta Hayden White, dá forma irónica às esperanças, possibilidades e verdades humanas; é uma apreensão da incapacidade da consciência para compreender plenamente o mundo. A sátira é uma consciência da inadequação da própria imagem da realidade; é um repúdio a todas as conceptualizações sofisticadas do mundo. A Ilustre Casa de Ramires, romance que narra o ilusório triunfo político, literário e colonizador do herói – de um Gonçalo-Portugal-D. Sebastião que regressa enriquecido de África –, apela irónica e ficcionalmente para o dito repúdio.

 

3. Conclusão

Extrapolando para o caso português o modelo do “desenvolvimento ontogenético da consciência histórica” de Jörn Rüsen (2005, 9-39), proposto por este último para compreender a transição da consciência histórica pré-moderna para a moderna durante o século XIX, poder-se-ia postular que o pensamento do “último Eça” (Monteiro 2014, 15-16)7 constitui a fase “crítica” na história da consciência histórica portuguesa moderna. No período pós-Ultimatum existia uma “narrativa-mestra” da história portuguesa que, afirmando a continuidade essencial entre a realidade social do passado medieval e o presente liberal-constitucionalista, e sendo replicada por um grande número de políticos, poetas e historiadores – entre eles Pinheiro Chagas, Antero de Quental, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro –, tinha adquirido o estatuto de “tradicional” e “exemplar”. Esta metanarrativa romântico-historicista esquematizava a história portuguesa em três fases: em primeiro lugar, uma época medieval concebida como o berço daquele vigoroso e heroico “carácter nacional” que levara um povo a olhar para além das costas ocidentais da Europa; a seguir, um período de três séculos, onde o ser nacional quase tinha perecido sob o absolutismo, a corrupção e a decadência; e finalmente, uma época presente liberal-democrática que, embora representando um avanço em relação à anterior, dava continuidade à trajetória descendente da nação, à espera de um ressurgimento messiânico. Esse relato que, não só tinha definido a unidade e a identidade da sociedade liberal portuguesa como também fornecido os modelos de ação que essa sociedade procurava transmitir como lições para o presente, foi o que o autor de A Ilustre Casa de Ramires veio negar, questionando e dissolvendo a sua estrutura, os seus princípios morais, as suas ideias de continuidade e de identidade (Rüsen 2005, 13-14, 30-32).

A crítica da metanarrativa romântico-historicista que encontramos nas páginas de A Ilustre Casa de Ramires não foi, contudo, feita através dos meios às vezes grosseiros e explícitos de um texto doutrinário, mas com base nas estratégias subtis da narrativa ficcional. A distância irónica, a sátira e a paródia foram, sem dúvida, os principais aliados de Eça nesta tarefa: satirizando os momentos fundamentais da esquematização convencional da história portuguesa em que um Ramires sempre participou; caricaturando – como narrador ou através da voz do protagonista Gonçalo – os artifícios da representação “realista” do passado típicos do romance histórico tradicional e da historiografia; e dramatizando as diferentes versões ou pontos de vista que as personagens têm sobre o mesmo acontecimento ou processo da história portuguesa – por exemplo, as descobertas e conquistas de além-mar. Através de tais estratégias poéticas e retóricas, Eça despojou a narrativa tradicional, assimilada e replicada pelos discursos dos seus contemporâneos, do seu carácter unívoco.

Tendo em conta isto, foi o “último Eça” um antinacionalista? Provavelmente não. Assim como os seus contemporâneos – e o demonstram os textos doutrinários que escreveu nessa altura –, o romancista amava a sua pátria e queria vê-la emergir dos problemas políticos, económicos e sociais que experimentava no final do século XIX. Ele apenas não concordava com os meios utilizados pelos “patriotarrecas” que, face aos problemas do seu tempo, não deixavam de empunhar o “glorioso” passado português. Distanciando-se deles, a forma particular de Eça contribuir para o bem nacional foi detetar e denunciar, no quadro de um romance, as aporias e ficções imanentes à interpretação romântico-historicista da história nacional portuguesa – a maior de todas, a de imaginar uma origem medieval, com traços aristocráticos, para uma entidade objetivamente moderna como era o estado-nação português.

 

Ricardo Ledesma Alonso, «A ficção da história nacional portuguesa em A Ilustre Casa de Ramires»Ler História [Online], 81 | 2022, posto online no dia 12 dezembro 2022, consultado no dia 27 dezembro 2022. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/11026; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.11026

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