Guião de leitura do filme Um
amor de perdição, de Mário Barroso
1-
Nas cenas iniciais, a transgressão, que é um dos
principais temas focados no filme, é introduzida recorrendo-se a várias
situações. Esta está presente quando vemos Manuel a ter relações sexuais não só
num auditório de teatro, mas também com um outro rapaz, transgredido assim de
algum modo regras da sociedade, uma vez que comete um crime de atentado ao
pudor ao fazer sexo num sítio público e também por, e não sendo este um crime,
ter relações sexuais com um rapaz, o que para a sociedade não é totalmente
aceite (e com isto não estou a afirmar que seja algo errado, apenas a fazer uma
observação geral, de algo que por vezes é considerado uma transgressão). É
também possível observar essa transgressão na atitude de Simão, que entra pelo
auditório e que num ato de rebeldia, ao ver o seu irmão a fazer algo que ele
reprova, atira uma bola à cara do coordenador do grupo de teatro. Outro
exemplo de uma transgressão é o facto de aquando da chegada de Manuel a casa,
este dar um beijo na boca à sua mãe e passar-lhe a mão pela perna, algo que não
é comum para a sociedade, e isso é possível observar com uma fala de Rita que
diz: “Meu irmão de certeza era o Simão, se não fosse, era com ele que eu
casava”; esta fala demonstra que a relação de Manuel e da sua mãe não era de
todo normal, constituindo por isso uma transgressão, pois se Rita não podia
casar com Simão, pois este era seu irmão, também Manuel não poderia ter
qualquer relação amorosa com a sua mãe.
2-
A meu ver esta frase de Rita é uma das grandes
chaves do filme, com ela percebemos que pelo menos esta família, a família
Botelho, é muito desunida, pois apesar de viverem lado a lado, isto é, viverem
todos na mesma casa, eles não vivem juntos, ou seja, não se ajudam, não lutam
pelo mesmo, é como se cada um deles estivesse sozinho. Através da frase podemos
entender que cada um lutará pelo que quer e isso é perfeitamente observável ao
longo do filme, por exemplo quando o pai de Simão não o apoia a conquistar
Teresa, pois este está apenas preocupado em vencer a “guerra” que tem com o
senhor Albuquerque, sendo por isso frio e nada sensível, não compreendendo o amor
do seu filho.
3-
As principais alterações efetuadas na
transposição do livro para esta versão cinematográfica são as profissões de
algumas personagens, e alguns lugares da obra. No livro, Simão conhece Teresa em
Viseu e não na escola como é aqui apresentado, as suas famílias são rivais e
vizinhas, contrariamente ao que acontece no filme onde a rivalidade provém do
emprego dos pais de Simão e Teresa (advogados); no livro João da Cruz é
apresentado como Ferreiro, enquanto no filme este é um mecânico. Outra das
principais diferenças é o local para onde o pai de Teresa a envia no fim da
trama, no livro esta vai para um convento, enquanto no filme esta é enviada
para uma clínica de recuperação de doenças mentais. Todas estas alterações são
efetuadas para acompanhar a evolução temporal que aconteceu desde a publicação
do livro, até ao dia em que o filme foi realizado.
4-
Este trajeto efetuado pelo livro é algo bastante
interessante, pois provoca alterações muito significativas tanto em Simão como
em Mariana, e ambas com o mesmo carácter, quando ambos pegam pela primeira vez
no livro, é como se cada um deles despertasse para o amor; primeiro é Simão que
pega no livro e pouco depois ao ver Teresa parece que se apaixona
instantaneamente; num momento posterior, quando Mariana pega no livro, lê um excerto
e parece também ela ficar apaixonada pela primeira pessoa que vê, neste caso
Simão. É como se o livro despertasse amor em cada pessoa que o lê.
5-
A distância entre Simão e Teresa sofre também
ela uma alteração no que diz respeito à forma como é tratada no livro e no
filme. No livro essa distância era colmatada através de cartas que ambos
trocavam, por seu lado o filme utiliza chamadas telefónicas no início e
posteriormente mensagens enviadas por Teresa a uma criada, que as passa a
Mariana e que finalmente as entrega oralmente a Simão, isto quando este se
encontra preso.
6-
Todo o filme é em torno do amor, e existem
vários tipos de amor que contrastam entre si, um dos exemplos mais claros são
os amores de Teresa e Mariana por Simão. Mariana, que é das duas a que passa
mais tempo com Simão, nunca lhe revela ao longo do filme que o ama, no entanto
isso é por demais evidente, uma vez que esta o ajuda em tudo o que ele
necessita, e no fim acaba também ela por morrer, visto que Simão também morre;
este é um amor platónico, e Mariana sempre teve essa noção, no entanto
prevalece permanece ao lado de Simão até ao fim do filme. Por seu lado, Teresa demonstra
outro tipo de amor por Simão, principalmente porque é correspondida. Tal como
acontece com Mariana, este também é um amor impossível, pois por situações exteriores a
Teresa e Simão este era tentado destruir por quem os rodeava, o que no fim do
filme aconteceu.
7-
Existem vários elementos trágicos presentes no
filme, desde logo o desafio, que é possível de ser observado assim que
entendemos que Teresa e Simão se apaixonam e que estes tentam a todo o custo
alterar o seu destino para conseguirem ficar juntos; no entanto isso nunca
acontece porque apesar de desafiarem o destino Teresa e Simão não o conseguem
alterar acabando separados de forma brutal. Existe também o pathos durante todo
o filme, inicialmente ele é observável em Simão que sofre por sentir que vive
num mundo com o qual não se identifica; esta é a personagem que mais sofre
durante todo o filme, pois mesmo quando encontra alguém com quem se identifica
criam-lhe uma barreira que acaba por se revelar inultrapassável, fazendo-o
sofrer até ao fim do filme, acabando este por sucumbir ao sofrimento e
matar-se. Teresa também se encontra em sofrimento e esta também desde muito
cedo, primeiramente por ser “prisioneira” de seu pai, o que no fundo acontece
durante todo o drama; esta sofre também com a distância que tem de Simão,
causada também ela pelo pai de Teresa que não a deixa ser livre. Por último,
podemos também relatar o sofrimento de Mariana, este que é um dos sofrimentos
mais dolorosos do mundo, porque Mariana sofre em silêncio, esta nunca revela a
Simão que o ama, pois sabe que não é correspondida e sofre muito por isso sem
que ninguém se aperceba; esta e tal como Simão, suicida-se no fim do filme ao
saber que a pessoa que amava morrera. O climax é outro elemento trágico
presente no filme, este que indica o ponto alto da ação, que a meu ver é a cena em
que Teresa está a ser levada para a clínica e onde depois Simão aparece e mata
o primo de Teresa, Baltazar; e considero este o momento chave da ação uma vez
que é ele que condiciona todo o resto do filme, uma vez já que após esse
acontecimento Teresa e Simão nunca mais se encontram e entendem que o destino
nunca os unirá, e por isso decidem morrer, pois assim talvez se possam unir não
fisicamente em terra, mas espiritualmente.
8-
Tal como referido em duas das questões
anteriormente respondidas, a meu ver a frase-chave é “vivemos ao lado uns dos
outros e não juntos”, pois esta explica a forma de agir de quase todas as
personagens, demonstrando que cada um luta apenas por si, e a cena-chave no meu
entender é a cena em que tanto Simão como Teresa são “isolados”, uma vez que
esta demonstra que apesar da luta de ambos o destino vai levar a melhor sobre
aquele amor, sendo esta um marco importantíssimo, e refiro-me à cena em que
Simão mata Baltasar e por isso é preso e em que Teresa é levada para a Clínica
de recuperação.
9-
A música neste filme exerce um papel que pode
ser comparado ao papel exercido em muitos livros pela descrição dos lugares em
que as cenas são passadas, é como se também os lugares e neste caso a música
fosse mais uma personagem. Nos livros a harmonia de cada lugar, ou a falta dela
indica a tranquilidade ou o desassossego em que essa cena se irá desenrolar e
aqui a música exerce o mesmo papel, demonstrando de algum modo o estado de espírito das personagens.
10- Ao
elaborar este filme, Mário Barroso decidiu intitular a obra como Um Amor de Perdição, uma vez que este é
apenas um dos tantos casos em que existem duas pessoas que se amam e que acabam
por não conseguirem ser felizes juntas pois o destino e as pessoas que as
rodeiam não o permitem. Mário Barroso não quis generalizar esta obra, e ao
colocar-lhe aquele artigo indefinido no início clarifica
que este filme é apenas sobre um dos muitos amores deste género que
infelizmente existem.
Rafael Calçada, 11ºB
1 comentário:
Rafael
Muito bem. Um trabalho com empenho e reflexão muito interessante. Tive gosto em ler.
Atenção, apenas, à tendência para o uso desadequado dos pronomes - porque excessivo e quando o sujeito está já claramente expresso -, em especial do pronome demonstrativo.
Nada que tira relevância ao texto...mas boas ideias merecem sempre textos tão perfeitos quanto possível.
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