segunda-feira, 16 de abril de 2012

Teolinda Gersão fala de A Cidade de Ulisses


Alguns tópicos a reter:
Este é um romance de amor na cidade de Lisboa e uma reflexão crítica sobre a cidade de Ulisses e o país - das origens aos nossos dias.
Nós somos seres muito complexos, num mundo muito complexo também. O que não quer dizer que não seja possível criar harmonia, diz a autora nesta entrevista.
A cidade de Ulisses é um romance que faz uma síntese da história de Portugal desde a sua fundação até aos dias de hoje, não deixando de ser uma história de amor entre uma dupla de criadores. O narrador é um pintor que vai contando a história, antes de mais para si próprio. Ao encontar a mulher da sua vida, comunga com ela a arte, o espírito e corpo. Paulo recorda a sua grande história de amor com Cecília, ligando-a à história de Ulisses, figura omnipresente, na cidade de Lisboa e na história deste casal. Ele, que começara por ser como Ulisses, acaba por viver o papel de Penélope. Por fim, encontra a hamonia emocional.

 Afinal, num mundo tão agressivo e instável, o amor, a construção de uma realidade emocional sólida - uma casa - é importante, diz ainda a autora.

O fundamental está aqui.






Vale a pena ver!

Flush

Num importante jornal do Brasil - a Folha de S. Paulo, surgiu, no suplemento, esta crítica da obra de V. Wolf. É simples e chama a atenção para algumas pormenores que podem ser relevantes para a prova.
 
"Flush não é um cão qualquer. Mesmo antes de ser retratado por Woolf, já fazia parte da nobre linhagem de animais literários, que remonta a Argos, cão de Odisseu. Flush pertenceu à poeta inglesa Elizabeth Barrett, posteriormente Browning. A esse cocker spaniel dourado, Barrett dedicou dois poemas.

Na década de 40 do século 19, bairros aristocráticos como Mayfair desfrutavam a incómoda proximidade de cortiços e maltas de criminosos. Bastava uma ligeira distração das senhoras para que seus totós [animais de estimação] fossem sequestrados por esses vizinhos. Foi o que ocorreu com Flush, não apenas uma, mas três vezes. Numa das ocasiões, Barrett se viu obrigada a meter-se num cupê para negociar o resgate com os malfeitores.
(...)
Woolf, por seu turno, narra o episódio do roubo de Flush, como vários outros da vida da escritora. Elizabeth Barrett já era famosa quando conheceu o poeta Robert Browning. Tinha 40 anos e vivia reclusa, sob o jugo do pai tirânico. Escreveu sonetos ao amado. Disse para o pai que se tratava de uma tradução sua para versos de Luís de Camões. O pai engoliu a lorota, e os poemas, talvez os melhores de sua lavra, ganharam o título de "Sonetos Portugueses".
O casal foi depois obrigado a fugir para a Itália. A originalidade da narrativa de Virginia Woolf residiria em mostrar esses eventos pela ótica de Flush.(...)
Mas o romance tem aspectos positivos. Um deles está no quadro satírico que a autora traça da sociedade inglesa, coisa incomum em sua prosa. São deleitosos os petardos dirigidos à obsessão britânica com a ancestralidade ilustre e à mania ocultista. Lorde Lytton, por exemplo, costumava surgir diante das visitas de robe puído, fitando-as com olhos esgazeados, pois acreditava ter adquirido o dom da invisibilidade.

Na sua tentativa de plasmar a experiência do cão, Woolf também faz magníficas descrições dos odores (bem antes, portanto, de "O Perfume", de Patrick Süskind): "O nariz humano é não-existente. Os maiores poetas do mundo não sentiram o cheiro de nada além de rosas de um lado e de esterco de outro. As infinitas gradações que existem entre as duas substâncias não foram registradas. Ainda assim, era no mundo dos cheiros que Flush vivia a maior parte do tempo".

No limite, está a questão de como exprimir o insubstancial por meio de palavras. Mas será que elas dizem tudo ou porventura "destroem os símbolos que existem" além de seu alcance? Sem o entendimento linguístico, forma-se entre dona e animal um "vazio espanto". Para transpô-lo, o cão oferece seu amor incondicional, e a poeta, seus versos. "Este cão apenas, guarda-me, /Sabendo que quando finda a luz /O amor continua a brilhar", canta Barrett. Com "Flush", Virginia Woolf presta sua homenagem ao romantismo.

http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u32621.shtml

Texto do Filipe

A viagem é o tema central da narrativa de Teolinda Gersão. O Portugal antes e depois de uma viagem é sempre diferente, as vidas mudam, as relações entre as pessoas mudam e a visão do mundo é outra.

Como viajantes, como Ulisses, e não como turistas, Paulo e Cecília são constantemente outras pessoas porque a cada dia que passa se encontram em si e no outro. É essa constante mudança que dá forma a Lisboa, é essa Odisseia, essa luta para se descobrirem que constrói "A Cidade de Ulisses".

A viagem é também sinónimo de esquecimento e fuga da realidade - episódio do desaparecimento de Cecília Branco - mas é acima de tudo um vetor de mudança e transformação da vida e do Mundo.

Filipe Ferreira
16 Abril, 2012 19:03

Texto da Eliana

Com algumas pequenas alterações, aqui fica o texto da Eliana.

Este livro abarca tanto um romance entre dois pintores como partes da história da cidade de Lisboa, referindo-se várias vezes à lenda de Ulisses, sendo esta obra também uma espécie de Odisseia onde o protagonista, Paulo, se apaixona pela personagem de Cecília, nascida em Moçambique, que vem para Lisboa e depois regressa.

A narrativa apresenta também um aspeto crítico sobre a degradação de Portugal, dos maus governos e da corrupção e refere inclusive a intervenção do FMI na crise na segunda metade do século XX e na atualidade.

Esta história termina de forma feliz, deixando a ideia de que - apesar de exigir uma viagem difícil - o amor é possível. Acaba com uma exposição em homenagem a Cecília; apesar de esta falecer, Paulo consegue lidar com a sua memória e amar outra mulher, Sara.

Eliana Janeiro, 11ºA
15 de Abril de 2012 16:24

domingo, 15 de abril de 2012

Excertos de uma apreciação de A Cidade de Ulisses


Deixo excertos de uma apreciação do livro.

"Esta narrativa ficcionada é, antes de mais, uma homenagem à cidade antigamente titulada de “Olissipo”, como os romanos lhe chamavam. (...) A escritora aborda algumas das problemáticas de que se compõem as relações humanas (o amor, a liberdade, a identidade, a opressão, a criatividade, etc) no contexto das ligações deste casal.
Na história que nos conta, da cidade de Lisboa, começa pela lenda de Ulisses, continua numa caminhada cronológica até aos nossos dias (...). Apesar destas infindas riquezas, imanentes a este romance, sobressai a sua crítica da presente situação do país. (...)
Traça, também, o paralelismo entre a intervenção do FMI dos anos 80 com a actual intervenção da “troika”(...). É, pois, um livro de múltiplas leituras (literária, histórica, artística, política, etc) que se conjugam como pano de fundo da história de amor entre os dois protagonistas.
É uma história de amor bem edificante, porque tem um final feliz (a Exposição póstuma em homenagem a Cecília e o novo amor entre Paulo Vaz e Sara).
É, com efeito, um livro de uma pertinente intervenção social que examina os vícios cometidos pelas elites históricas portuguesas  revisitando uma maravilhosa Lisboa antiga e moderna. (...)
Contudo, apesar deste teor de soturnidade, que paira no romance de Teolinda Gersão, há uma mensagem subjacente à narrativa que é a de imensa confiança nas criatividades, artística, humana e técnica, para resolver os problemas actuais da sociedade portuguesa, da Europa e das pessoas como seres humanos, não obstante as intrincadas malhas das crises que perpassam o mundo e Portugal, neste início do século XXI.

Fica, pois, uma mensagem de esperança nesta tempestuosa Era de incertezas que atravessamos, em que necessitamos de um porto de abrigo rumo à descoberta de um Novo Mundo, que sempre se assumiu como a nossa missão existencial como povo.
Nuno Sotto Mayor Ferrão



[1] Teolinda Gersão, A Cidade de Ulisses, Lisboa, Sextante Editora, 2011.
[2] Ibidem, p. 49.
[4] Teolinda Gersão, op. cit., pp. 198-200.

sábado, 14 de abril de 2012

Crítica ao livro A Cidade...

Teolinda Gersão, «A Cidade de Ulisses», Sextante, 206 pp.
Novo romance tem já nas bancas Teolinda Gersão.


 Teolinda acusa, põe o dedo na ferida, sem medos e falsos rodeios ou rodriguinhos vai ao osso, dando a ver, gritando para quem não o queira fazer, os podres de um Portugal que é o de hoje, mas também, no seu pior (e por vezes no melhor) já era o de ontem, ou de ontens! (...)

Numa espécie de contraponto ou claro-escuro, temos por outro lado uma comovente história de amor [com] dois protagonistas. Ele, pelo desespero existencial da sua essência de solitário, «lobo» que ainda assim ama, que ainda assim perde, que ainda assim busca e sofre numa espécie de auto-exílio. Ela, pela força das decisões, dos rumos escolhidos, da desdita para a qual o destino a empurra. E aqui enreda-se o contar numa outra vertente do livro, o modo como cita e recria (homenageando) o mito de Ulisses.

É que, na verdade, assistimos neste desfiar de enredo a uma espécie de «Ulisses» ao contrário. Um «Ulisses» invertido em que, aqui, é Penélope que parte deixando Ulisses num vazio angustiante, numa espera que se eterniza e que o levará mesmo (às portas do desespero) a partir em busca de Penélope, sem saber que o fio do seu destino comum há muito se partiu. «Tinhas partido e era eu que ficava em casa, à tua espera. Como Penélope, era eu que te esperava, que mantinha a esperança. Contra o mais elementar senso comum.» Uma analogia que é tanto mais palpável quanto se percebe que, a exemplo de Ulisses que foi morto pelo seu filho, também este nosso Ulisses (de Teolinda, entenda-se) acaba, indirectamente, por morrer (ainda que não fisicamente) por via do seu filho, que de algum modo renegou, que, não tendo sequer nascido, acabou por gerar a morte futura do seu progenitor; algo que se traduz ainda, e curiosamente, por via de um excesso, ou liberdade ficcional muito interessante, que estende o limite da tragédia transpondo para Penélope (Cecília) a morte física e a consequente morte psicológica e existencial de Ulisses (leia-se Paulo Vaz).
Finalmente, «A Cidade de Ulisses» resulta num belo tributo a Lisboa. Quanto a mim, (...) aludindo ao melhor de Lisboa, as suas ruas, as suas gentes, o seu ar, a sua luz – mas, voltamos a sublinhar, sem se demitir de elencar os seus “pecados” , Teolinda tece-nos aquilo que, em pintura, seria algo parecido com uma aguarela. Tudo, de resto, como habitual no dizer de Teolinda, respira contenção, luz, serenidade e apaziguamento. Numa palavra: sensibilidade."

sexta-feira, 13 de abril de 2012

E Zé Fernandes?

Fernandes voltou a Paris e lá, sentindo-se abandonado e cheio de tédio, descobriu-se rodeado de criaturas fúteis, a viverem uma vida falsa e mesquinha.

Achou que os antigos conhecidos - que lhe pareciam sujeitos civilizados - eram criaturas frágeis e vazias, idênticas entre si e “massas” impessoais, sem carácter, dispostas – conforme a conveniência pessoal – a agradar ou desagradar aos outros.

Boulevard des Capucines, uma das ruas centrais de Paris, no final do século XIX
«Arrastei então por Paris dias de imenso tédio. Ao longo do Boulevard revi nas vitrinas todo o luxo, que já me enfartava havia cinco anos, sem uma graça nova, uma curta frescura de invenção.» e «À noite, nos teatros, encontrava a cama, a costumada cama, como centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes de erotismo. »
Interior de um salão na Belle Époque

Não suportou a cidade e retornou a Portugal.
José Fernandes acaba por espantar-se consigo próprio e deixa-nos a nós a pensar:
“Oh senhores!”, pensava eu “pois não me divertirei nesta deliciosa cidade?” Entrara comigo o bolor da velhice?"

 

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Lê um excerto duma carta de Paris, enviada por Eça de Queirós, em 1894.

Eça de Queirós na sua última residência de Neuilly - c. 1893

    «Não sei se falei já do calor. Está terrífico. E o que o toma mais duro de atravessar é a greve dos cocheiros. Paris está sem tipóias – o que é, sobretudo neste momento, como o deserto sem camelos. Se nesta supercivilizada cidade o serviço dos ónibus ou dos bondes fosse fácil, exacto e rápido, a falta de carruagens não causaria desgostos – e seria mesmo uma salutar instigação à economia. Mas o ónibus e o bonde em Paris são instituições rudimentares. E mais fácil para um parisiense entrar no céu – do que num ónibus. Para obter o lugar na bem-aventurança basta, segundo afirmam todos os santos padres, ter caridade e humildade. Para obter o lugar no ónibus, estas duas grandes virtudes são inúteis – e mesmo contraproducentes. Antes o egoísmo e a violência.
 Depois de conquistado o lugar, a outra dificuldade insuperável é sair dele – por aquele meio natural e lógico que consiste em chegar e apear. Nunca se chega – senão quando já é desnecessário. Eu e um amigo partimos um dia da gare de Orleães, à mesma hora; eu no comboio para Portugal, ele no ónibus para o Arc de l’Étoile. Quando eu cheguei a Madrid soube, por um telegrama, que o meu amigo ia ainda na Praça da Concórdia. Mas ia bem. O ónibus em Paris é o grande refúgio e local do namoro. Quanto mais comprida a jornada, mais demorado portanto o encanto. O meu amigo encontrara no seu ónibus a criatura dos seus sonhos. Era uma loura com sardas prometedoras. Quando enfim chegaram ao Arco da Estrela estavam noivos ou pior. São estas pequenas comodidades da vida sentimental que conservam a freguesia aos ónibus. (...)

A moda, ou antes aqueles que a fazem, acaba de tomar uma resolução sapientíssima. Paris, de ora em diante, fica sendo considerado, durante os meses de Verão, para todos os efeitos sociais, como campo e não como cidade. E permitido, portanto, passear, fazer visitas, ir ao teatro, etc., de chapéu de palha, jaquetão claro e botas brancas. Nada mais justo. Era com efeito absurdo que Paris nos servisse trinta graus à sombra – e que os Parisienses continuassem a sofrer a tirania da sobrecasaca apertada e do duro chapéu alto. A moda mesmo deveria ir mais longe e permitir a tanga. O vestuário foi inventado por causa da temperatura, e deve portanto variar com ela harmonicamente. A neve pede peles, peles suplementares, arrancadas a animais. O sol do Senegal ou de Paris, em Julho, só pede a própria pele – sem mais nada, além de uma folha de vinha. Esta seria a lógica das coisas. A moda não ousou ser tão radical – e foi só até à palha e à alpaca.
Mas é um primeiro passo no bom senso. Para o ano, talvez nos seja permitido o ir à Ópera, como deveríamos, em mangas de camisa.»





Eça de Queirós, Ecos de Paris, IV, disponível em

Crédito das imagens:

Portugal (Douro)

A chegada também não corre muito bem (cf. na imagem II, vemos painéis evocativos da viagem de burro da estação de comboios até à Quinta).

É memorável a descrição da forma como decorre a viagem da estação até à Quinta, muito pouco apropriada a quem estava habituado aos luxos de Paris...

Hoje em dia, existe um percurso pedestre chamado «Caminho de Jacinto»,  que está de acordo com o relato do romance “A Cidade e as Serras.
"Tem início na Estação de Tormes (Aregos) prolongando-se serra acima por caminhos de natureza até Tormes ou Quinta de Vila Nova. A Estação é um dos elementos fundamentais do itinerário, pois é neste cenário que a expectativa urbana se confunde com a rusticidade do lugar, onde a curiosidade sobranceira de Jacinto se verga perante a graciosidade acolhedora da pequena infra-estrutura instalada entre a serra omnipresente e a, agora, calmaria das águas do rio." (Fonte: Fundação Eça de Queirós, in http://www.feq.pt/o-caminho-de-jacinto.html)


Estação onde Jacinto «chega», na atualidade, com painel evocativo de A Cidade e as Serras

Mas, progressivamente, vai intervindo e assentando a vida naquela nova realidade.




Mas, uma vez na serra “em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita!” e “Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores silvestres. (…) Por toda a parte a água sussurrante, a água fecundante... Espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos, dentre as patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam”

Primeiro, a intenção era ficar pouco tempo, porque apesar da beleza da serra seria impossível viver ali: Jacinto só consome aquela beleza e novidade.

Fundação Eça de Queirós

A descrição da viagem


}A descrição impressionista, cheia de pormenores de cor, movimento, som são consideradas das melhores páginas escritas pelo autor:

Interior de comboio - salão

}“Jacinto, pela vidraça escancarada, todo fustigado da chuva clamorosa, furava a negrura, na esperança de avistar as luzes de Medina e um comboio paciente fumegando... Depois recaía no divã, limpava os bigodes e os olhos, maldizia a Espanha. O trem arquejava, rompendo o vasto vento da planura desolada. E a cada apito era um alvoroço. Medina?... Não! Algum sumido apeadeiro, onde o trem se atardava, esfalfado, resfolgando, enquanto dormentes figuras encarapuçadas, embrulhadas em mantas, rondavam sob o telheiro do barracão, que as lanternas baças tornavam mais soturno.”

}“Jacinto esmagava o espesso tapete do salão com passadas rancorosas, rosnando como uma fera. E ainda assim se escoou, às gotas, uma hora cheia de eternidade.- Um silvo, outro silvo!... Luzes mais fortes, longe, palpitaram na neblina. As rodas trilharam, com rijos solavancos, os encontros de carris. Enfim, Medina!...”

Interior de comboio - carruagem restaurante
Tal desconforto e falta de «civilização» deixavam Jacinto em alvoroço:
“Tens fome Jacinto?
-Não. Tenho horror, furor, rancor!... E tenho sono.”

A mudança – de Paris a Tormes

}Está aberto o caminho da mudança: «Zé Fernandes, vou partir para Tormes./ Para Tormes? Oh Jacinto, quem assassinaste?...» (cap. VIII).


}Arranjou tudo o que lhe parecia necessário para passar um mês sem sentir tanto a falta do conforto de que gozava no 202 – guarda-roupa, livros, aparelhos, utensílios... :

“Começou então no 202 o colossal encaixotamento de todos os confortos necessários ao meu Príncipe para um mês de serra áspera--camas de pena, banheiras de níquel, lâmpadas Carcel, divãs profundos, cortinas para vedar as gretas rudes, tapetes para amaciar os soalhos broncos. (…)

De todos os armazéns de Paris chegavam cada manhã fardos, caixas, temerosos embrulhos que os emaladores desfaziam, atulhando os corredores de montes de palha e de papel pardo, onde os nossos passos açodados se enrodilhavam. O cozinheiro, esbaforido, organizava a remessa de fornalhas, geleiras, bocais de trufas, latas de conservas, bojudas garrafas de águas minerais. Jacinto, lembrando as trovoadas da serra, comprou um imenso para-raios.”

À sua chegada a Tormes, porém, nada encontrou - tudo ficara pelo caminho.
Como iria sobreviver.

Aspirações, deceções…Já experimentei…Uma maçada!

  Nos caps. VI e VII Jacinto vive uma escalada de indiferença e de tédio. São particularmente importantes as reflexões na viagem aos altos de Paris, quando observam a cidade de longe e Jacinto “murmurou pensativo:/Sim, é talvez tudo uma ilusão …e a Cidade a maior ilusão!” (cap. VI).

  }É a primeira vez que Zé Fernandes arrisca teorizar sobre o assunto:
  « (…) Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é passivo como um escravo ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!»

 
}Também o episódio do dia 10 de janeiro (cap. VII), pois  no dia em que festejava os seus trinta e quatro anos, bradou para o Grilo:

«- Eu hoje não estou em Paris para ninguém. Abalei para o campo, abalei para Marselha... Morri!». Viveu durante esse dia momentos de «preguiçoso silêncio», de «pensativo silêncio». Na biblioteca, com os seus milhares de livros, igualmente nada havia para ler. E, depois de uma investigação aturada a tentar descobrir uma distração, apenas descobriu nessa floresta de maravilhas da cultura e da Civilização «um velho Diário de Notícias», que levou para o quarto, «para dormir, para esquecer
 

A vida em Paris: «Uma seca!»

A vida do "Príncipe" Jacinto começou a revelar-se-lhe duramente «Uma seca!».
  «Espalhava pela mesa um olhar já farto».
  «Nenhum prato, por mais engenhoso, o seduzia». Aborrecia-se com o movimento e barulho das ruas, concordava com a apreciação do amigo quanto ao aspeto da cidade, referindo: «É feio, é muito feio!».


Desinteressava-se até do Bosque de Bolonha
(o principal bosque de Paris e lugar da moda).
Imagem do Bois de Bologne, à época um dos sítios mais animados de Paris.



}Tudo começou a ser «uma maçada amarga». E, no jantar oferecido ao Grão­Duque, «declarou que hoje a única emoção, verdadeiramente fina, seria aniquilar a Civilização. Nem a ciência, nem as artes, nem o dinheiro, nem o amor, podiam já dar um gosto intenso e real às nossas almas saciadas. Todo o prazer que se extraíra do criar estava esgotado. Só restava, agora, o divino prazer de destruir!» O elevador avariado fê-lo desabafar, ao terminar a referida festa:
«Uma maçada! E tudo falha!»

}Entretanto, três dias depois, chega a notícia da tempestade que entulhara «os ossos veneráveis dos Jacintos» em Tormes (cap. V). Em termos da narrativa vai ser muito importante porque dá o pretexto para os desenvolvimentos dos cap. seguintes, em particular a decisão do cap. VIII.  

A viagem de Jacinto

Jacinto, primeiro, ao fugir ao tédio parisiense, depois, ao buscar algum equilíbrio e felicidade, realizou uma viagem de descoberta de outros prazeres – a natureza, a boa mesa frugal e campesina, a agricultura – e de reencontro consigo mesmo e com o seu país.

Lembremos o  primeiro comentário à chegada a Portugal:

“Então é Portugal, hem?...Cheira bem!" (Jacinto)

"Claro que cheira bem, animal!” (Z. Fernandes)

A viagem é tanto espacial, física e exterior, quanto  interior.  A Cidade e as Serras é um romance no qual se destaca a categoria espaço – físico e social:

Øos ambientes são fundamentais para a compreensão da história, destacando-se os contrastes por meio dos quais se contrapõem:

Ø o universo mundano, social e tecnológico do 202 com

Øa vastidão, a simplicidade e a presença da natureza de Tormes.
Suma Potência X Suma Ciência = Suma Felicidade? Nem por isso…

A Cidade e as Serras desfaz a lógica da inicial fórmula metafísica de Jacinto: Suma Potência X Suma Ciência = Suma Felicidade
Pelo contrário, o desenvolvimento do romance vem demonstrar, através da evolução espiritual de Jacinto, que a Suma Felicidade depende, sim, da Suma Simplicidade.  Assim:
José Fernandes conta-nos a história do «Príncipe da Grã-Ventura», remontando às origens, mas chegando rapidamente aos tempos em que Jacinto, formulada a sua «Equação Metafísica», Suma Ciência X Suma Potência = Suma Felicidade, se apaixonava com as maravilhas da técnica.
José Fernandes, entretanto, vai a Guiães. Passaram-se sete anos. Regressa a Paris. A Civilização instalara-se no 202.
Mas no olhar de Jacinto «já não faiscava a antiga vivacidade». E, contrariamente ao que José Fernandes ainda pensava, ao deixar o amigo no primeiro dia de reencontro, Jacinto já não recolhia da Civilização «a felicidade perfeita».