sábado, 26 de novembro de 2016

Frei Luís de Sousa - Diário de D. Madalena



Querido diário


    Hoje estive a ler e o quanto essa leitura me deixou a pensar! A pensar no quão infeliz fui e ainda sou por viver atormentada e com medo, de tal maneira que não me deixaram ainda gozar um momento que seja a felicidade imensa que me dá o amor de meu querido marido, Manuel de Sousa Coutinho. Oh! que pelo menos nem suspeite ele desta minha desgraça...
    Assustei-me quando Telmo interrompeu os meus pensamentos. Começou por me pedir conselhos mas quem sou eu para dar tais conselhos depois do que fiz, no passado? Comecei a recordar os tempos antigos, de quando conheci Telmo, em meu primeiro casamento... Telmo nunca foi realmente a favor de meu casamento com Manuel, do qual tenho a minha querida filha Maria, pois sempre foi fiel a seu amo D. João de Portugal. O quão amigos ele e Maria são! Ela apenas ouve, crê e sabe o que Telmo lhe diz, quase como se fosse ele a sua dona! É uma criança tão curiosa, apesar de delgadinha pois de tão doente que está... O quanto a sua saúde me cuida! Telmo e eu combinámos contar a Maria somente o que deva de saber devido à sua tamanha curiosidade pois quer sempre saber para além do que é próprio da sua idade. 

Voltando a quando conheci Telmo: foi uma altura muito difícil para mim pois ficara viúva e sem ninguém e foi em Telmo que me amparei, que encontrei o carinho e proteção de que precisava. Procurei D. João por toda a parte durante sete anos até que decidi desistir pois não recebia provas de que realmente estivesse vivo. Ai o quanto chorei e sofri nessa altura! Telmo nunca realmente acreditou na morte de meu primeiro marido, acreditando ainda hoje que poderá voltar, sã e salvo. E devido a isso anda a suscitar em minha querida Maria ainda mais curiosidade naquele espírito já tão perspicaz, contando-lhe histórias acerca da tão famosa batalha.

    Maria, entretanto, entrou falando a Telmo que queria que este lhe contasse a história de que D. Sebastião não morreu. Oh! Minha querida filha! Não gosto de a ouvir falar destes assuntos. Não me contive e comecei a chorar. Minha filha logo me veio abraçar e confortar. Ando sempre em sobressalto com ela pois e se lhe acontece alguma coisa? Só quero o melhor para minha filha, sempre! Acho que se devia de distrair mais pois estuda demais, cansa-se demais, enfim.
    Meu cunhado, Frei Jorge, apareceu e viu a preocupação em que me encontrava pois Manuel ainda não regressara de Lisboa e já estava a anoitecer. Disse-me ele que os do governo querem mudar de ares agora que a peste está acabada (assim se presume pois há raríssimos casos agora) e que os quatro governadores se querem mudar para cá, para nossa casa! Pois que mal fizemos nós a Deus? Com tanta casa por aí tinham logo de escolher esta!? Manuel chega finalmente e vem afrontado! Notei a sua preocupação e tratei de lhe perguntar o que se passava e logo nos contou que teríamos de sair daquela casa imediatamente! Percebi o quão zangado estava e que se queria vingar deles e tratei de chamá-lo à razão e foi então que sugeriu irmos para casa de meu antigo marido, D. João. Não, não podíamos ir para lá, não queria voltar para lá, para aquela tal casa que me traz tantas memórias e para onde não queria voltar mais! Eu não tenho ânimo...

    Falei com meu marido a sós, implorando-lhe para que não fôssemos viver para aquela casa... Oh! Viver naquela casa para mim seria um tormento, um terror, uma dor na alma, era como se fosse encontrar lá a sombra de D. João e voltasse a estar sobre o seu poder e que ele me arrancasse dos braços de Manuel, que atravessasse uma espada de dois gumes entre nós dois e nossa filha e nos separasse para sempre! Ai o quão infeliz seria... Mas não havia outra alternativa. Os governadores apressaram-se e já haviam partido de Lisboa em direção a nós. Manuel estava determinado a dar-lhes uma lição então mandou partir tudo e, para meu grande espanto pois não esperava tal ação, ateou fogo a nossa casa. Vi tudo aquilo a arder. Vi a minha querida casa arder... E assim partimos, rumo ao palácio que antes fora de D. João.


Querido diário;
    Oito dias. Haviam passado oito dias desde que ali estávamos e só nesta noite consegui dormir em sossego. Aquele palácio a arder, aquela cena toda aterrou-me! Sempre que ia para fechar os olhos e dormir via aquelas chamas enoveladas em fumo a rodear-me a casa e a devorar tudo com fúria. E não deixo também de pensar na perda daquele retrato de Manuel, comido pelas chamas, e em como é um sinal de que alguma desgraça maior está para vir, que me vai arrancar dos braços de meu querido marido. Oh! Que desgraça a minha... Lembro-me na primeira noite que viemos para esta casa e entrei com Maria numa sala onde apenas um brandão estava aceso e iluminava o retrato daquele que é D. João de Portugal. Não me contive e soltei um grito. Ver retratos seus e ouvir seu nome ainda me faz estremecer...

    Todo este meu mal é susto e medo de perder meu amado marido, mas tudo se me curou quando Telmo me havia contado a boa nova de que os governadores deixaram cair o caso em esquecimento e Manuel estava finalmente livre, já não precisava de se esconder todos os dias. Mal o vi, corri para seus braços. Oh! O quão bom é tê-lo comigo de novo! Não quero que me deixe mais, precisava muito da sua companhia, especialmente no dia de hoje... Mas ele me disse logo de seguida que tinha de ir a Lisboa com Frei Jorge pois estava em muita dívida com o arcebispo. Logo hoje! Não queria ficar só outra noite... Até Maria quis ir e deixar-me só! Mas sei que lhe ia fazer bem espairecer, mudar de lugar, distrair-se apesar de não querer que ela vá devido ao quão doente está. Frei Jorge ofereceu-se para me fazer companhia até todos voltarem de Lisboa. Na despedida, não me contive e desabei em lágrimas. Nunca havia estado assim! A preocupação com Maria é cada vez maior, cuidado de que piore.

    Toda eu sou medo, medo de vir a achar-me só neste mundo... E hoje, hoje... hoje é o dia que ainda temo que não acabe sem muita desgraça pois hoje faz anos que casei a primeira vez e faz anos também que... vi pela primeira vez Manuel de Sousa... e conto isto sendo uma das infelicidades da minha vida pois este amor começou com um crime porque amei-o assim que o vi, ainda D. João era vivo. O pecado estava-me no coração e dentro da alma pois dentro de mim já só tinha a imagem de meu amante e não a de meu bom marido...

    Assustei-me quando Miranda entrou, apressado, informando-me que um romeiro havia ali chegado da Palestina e dizia trazer um recado para mim e que somente mo diria a mim! Mandei-o entrar. Frei Jorge logo tratou de o interrogar. Disse ser português e que havia cumprido vinte anos em Jerusalém, cativo. Disse também que não tinha família, pois esta havia feito a sua felicidade com a morte do romeiro, nem amigos. Que família tão vil seria capaz de ficar feliz com a morte de um ente querido!? Mas logo tratou de me dar o recado por que ali havia ido e eu nem queria acreditar... O romeiro me disse, e passo a citar:” Ide a D. Madalena de Vilhena e dizei-lhe que um homem que muito bem lhe quis aqui está vivo por seu mal e daqui não pode sair nem mandar-lhe novas suas de há vinte anos que o trouxeram cativo”. E logo aí percebi que D. João de Portugal, meu primeiro marido, estivera vivo este tempo todo! Entrei em desespero! Oh, meu Deus, meu Deus! Fiquei perdida, espavorida! Sempre disse que temia que este dia não acabasse sem muita desgraça e aqui está ela! Ai e minha filha? Minha querida filha estava infame e desonrada...!


Querido diário;
    Ai minha querida filha! Voltou de Lisboa ainda pior daquela sua saúde... Eu bem a avisara para não ir mas não me deu ouvidos... Já havia contado a Manuel que D. João estava vivo e ambos havíamos decidido abraçar a religião devido ao pecado que cometemos. O tão esperado dia, aquele que mais temia, chegou: o dia em que me vou separar de meu querido marido para sempre... Oh! que desgraça a minha! O Prior de Benfica já havia chegado e estava tudo pronto para o hábito ser lançado sobre nós.

    Fui ao encontro de Manuel, queria dizer-lhe uma última palavra, tentar fazer com que voltasse atrás com a sua palavra mas não valeu de nada... Isto tudo ia mesmo acontecer, e já! Nem mais um instante nos deram! Já que todos me abandonaram neste mundo o Senhor que me ampare agora pois já não posso com as minhas desgraças...

    E a santa cerimónia começou. Mas logo foi interrompida por Maria, que entrou pela igreja a dentro, completamente fora de si, dizendo que não se lhe podiam ser retirados os pais, que não lhe importava o outro. Ai, minha querida filha! Aquelas rosetas hécticas não enganavam ninguém. Nunca a tinha visto em tal estado, meu Deus! De tão mal que estava, acabou por cair morta, minha filha tinha acabado de morrer a meus braços! Deus tinha levado aquele anjo de vez para o Céu. E a cerimónia prosseguiu...


 Cena do filme Quem és tu?, de João Botelho


Na 1ª imagem, a grande atriz Carmen Dolores, no papel de D. Madalena, numa encenação da peça para a RTP.

Autora do Diário
Luana Vicente
Nº 15      11ºB

1 comentário:

Noémia Santos disse...

Parabéns - um trabalho abrangente e que dá conta da ansiedade, do conflito interior e do carácter da personagem.