(não percam esta D. Madalena!)
28
de julho 1599
A minha tarde foi como tantas
outras e como em mais nenhuma, no meu elegante palácio, no meio das minhas sedas,
das minhas flores e porcelanas na sala onde eu tinha o quadro do meu amor, o
meu cavaleiro Manuel de Sousa Coutinho.
Eu sempre soube que a harmonia
em que estava a minha vida era passageira, sempre pressenti que esta felicidade
não poderia ser duradoura nem infinita. E, naquele dia, as palavras do episódio
de Inês de Castro faziam-me refletir mais sobre o engano e pecado em que vivo.
Telmo, o meu fiel aio e amigo,
não gostei de o repreender, mas, ele e Maria têm uma relação tão forte que eu
vivo neste medo constante do passado e do futuro, medo que ele lhe conte as
coisas, medo que a minha única filha já tão fraquinha e nova sempre cheia de
perguntas, encha aquela cabeça com coisas tão fora da sua idade.
O Telmo acredita e, não perde
a esperança, de que D. Sebastião e … o meu … primeiro marido … reapareçam, que
tormento. Mas ele sabe que fiz de tudo e gastei tudo e mais nada poderia ter
feito, naqueles 7 anos, para encontrar D. João de Portugal, o seu tão adorado
amo, que me foi dado como morto naquela terrível batalha, por isso prometeu
nunca mais mencionar este assunto, especialmente, a Maria.
Maria acredita plenamente que
D. Sebastião vai reaparecer e que a batalha de Alcácer Quibir não é como contam,
e, assim como o povo, ela vive nesta cega esperança que me tira tantas noites
de sono. Sinto-a cada vez mais frágil e enfraquecida, amo-a e não desejei outro
filho tanto quanto a desejei e, vê-la sempre em casa fechada, a ouvir
histórias, a ler, a estudar, faz-me viver em constante sobressalto, mas não
consigo que ela vá para a rua conviver com as crianças da sua idade.
Quando o meu irmão Jorge
chegou, eu pressenti desgraça, mas queria ouvir a boa nova. Como os meus
pressentimentos falam sempre mais alto … só quando meu querido Manuel chegou, percebi,
ele nunca reagira daquela maneira, estava estranho, não haveria nada a fazer,
os governadores castelhanos vinham mesmo ocupar a nossa casa, o meu lar, e o da
minha família.
No meio de toda aquela
confusão, onde Doroteia e Miranda corriam de um lado para o outro com os nossos
principais pertences, percebemos que os governadores adiantaram a vinda e
estavam a chegar. O chão caiu-me sobre os pés e Manuel disse-me que iriamos
para o palácio de João de Portugal.
Tentei dissuadi-lo, implorei
por tudo, para irmos para qualquer sitio menos aquela casa. Ele conhecia o meu
passado, sabia o meu medo de um reencontro com este, mas se era para onde ele
queria ir eu segui-lo-ia.
Quando estávamos de saída, uma
esperança de que tudo aquilo fosse temporário dissipou-se, quando vi o meu
bravo, corajoso e destemido marido pegar fogo a nossa casa. Fugir não foi o meu
primeiro pensamento, assim que vejo o meu quadro, o quadro do meu cavaleiro,
ficar entre as chamas, mas já não havia nada a fazer.
Durante a viagem escorreram-me
as lágrimas pela face, e, pensar, que o único sitio seguro neste momento é esta
casa, o meu pesadelo tornou se uma realidade atroz.
1
de agosto de 1599
Há dias
que cheguei a esta escura, fria e austera casa, nem dei pelo tempo passar. Para
cada canto que olho, revivo o passado, um passado que eu queria que não me
assombrasse, e, aquele retrato … retira-me as forças para sair do quarto ou
para escrever.
Provavelmente, Maria precisa
de mim, mas pensa que estou doente e, sempre tem o Telmo, que dá conta do
recado. No entanto, este medo constante está mesmo a deixar-me doente, mas eu
sei que, enquanto, não perder Manuel, o meu amor, a minha vida, o meu porto de
abrigo hei-de sair deste quarto e recompor me…
4
de agosto de 1599
Nesta manhã, logo hoje …
quando ouvi a voz de Manuel, tive as primeiras forças para sair do quarto. Eu,
já sabia pelo Telmo da boa nova. Manuel poderia vir para perto de nós, não
teria mais que se esconder. Mesmo que tivesse que ser nesta casa, a única coisa
que eu pensei foi, estamos finalmente em família, posso voltar a sentir-me
feliz e concentrar-me mais no presente.
Mas, claro, que nada correu
como esperado. Eu também percebo que, só as orações de Maria não chegariam para
resolver os problemas, mas eu não conseguia orar para outra coisa, como orei
pelo passado que eu pretendia afastar.
Manuel avisou-me que teria de
ir a Lisboa, ele estava em divida para com o arcebispo depois do que fizera, à rebelião,
à nossa casa, e como já uma semana tivera passado, desde o acontecimento, os
ânimos já tinham acalmado. Era preferível ele deixar-me só neste dia …o pior
dia …, mas eu saberia que ele não teria de pagar a sua divida com a vida.
Maria, pobre criança, quis ir
com o pai a Lisboa, ao convento, conhecer a Tia Joana. Como eu quis que ela
ficasse comigo, a fazer-me companhia, mas eu não podia ser egoísta a esse
ponto, era uma oportunidade de ela apanhar ar. É uma criança com uma
sensibilidade e inteligência invulgares, mas já nem sei se é efeitos da doença,
anda sempre tão quente e rosadinha. Por outro lado, aqueles ares de Lisboa, à tão
pouco contaminados de peste … orei pelo melhor dela e do meu querido, o meu
maior medo sempre foi perdê-los, ficar só neste mundo, outro tormento foi para
a minha alma.
Jorge sempre me acalma, mas
hoje mal ele sabia que nada me poderia tirar deste desassossego, não aguentei e
contei-lhe o que esta sexta feira tinha de especial. O dia, do meu primeiro …
casamento, o dia do desaparecimento de D. Sebastião e o dia em que vi, pela
primeira vez, Manuel Coutinho e me apaixonei nesse mesmo segundo, sim, eu
incluo-o nas infelicidades, pois, este amor, nasceu do pecado … D. João de
Portugal ainda estava vivo e, tudo o que a minha alma e o meu corpo desejavam
era Manuel de Sousa Coutinho. Eu amei-o, naquele momento, apesar de saber que
era um crime, no fundo nunca o senti como tal … eu nunca amei D. João, casei
tão nova e imatura.
Quando aquele peregrino, vindo
dos Santos Lugares, bateu à porta com um recado para mim, não poderia imaginar
que seria um recado do passado, até que depois, claro, de lhe oferecer de comer
e agasalho e de este rejeitar com tamanha arrogância, pressenti que o que eu
tanto temi durante estes 21 anos, estava a um passo de se realizar. Devo ter
ficado pálida como cal, quando o Romeiro trouxe o recado de D. João de Portugal
que, afinal, vivo estivera todos estes anos, cativo. Quis tanto que fosse um
engano daquele homem, mas ele virou-se para o retrato, aquele retrato, de que
eu nada gosto e aí, as dúvidas não eram nenhumas e não poderia ter pensado em
mais ninguém, como pensei em Maria, que é o fruto do meu pecado.
4-5 de agosto de 1599
Já era tão tarde e eu, só
queria que o meu amor me ouvisse, queria que pelo nosso amor, pelas memórias da
nossa felicidade antiga, pelas saudades de tanto amor e ventura não se
precipitasse e que pensasse que este Romeiro, este vagabundo, um homem que se
diz ser ninguém, estivesse a mentir e em vez disso entregou-se a uma fé e
crença de forma tão cega, que apenas me falou da impossibilidade do nosso amor.
E era verdade, não poderíamos
continuar juntos. A nossa desculpa para com Deus, já não existia. Estava tão só
neste mundo, foi o castigo divino do meu pecado, tirou-me Manuel e também Maria,
que eu já nem sabia se dormia ou se estava morta. A minha única saída eram as
mortalhas e a minha sepultura seria o claustro.
Tive que tentar dissuadir, as
vezes que conseguisse, Manuel. Mas este, tão bom homem, nem me deixou abraçá-lo
uma última vez e, na capela da Senhora da Piedade, na igreja de S. Paulo dos
Dominicanos d’Almada, eu, ao lado de Manuel, já com o hábito de noviça e,
ajoelhada sobre o arcebispo e o prior de Benfica, pronta para a minha redenção,
oiço Maria. Estava viva, a minha menina. Bem que pediu misericórdia pela nossa
família, mas não havia nada a fazer. Ela tentou, na mesma, lutar pelos pais. Ao
menos, serviu pelo abraço que os três demos, que acabou pouco depois, quando
Maria agarrada à minha mortalha, ao ouvir algo, que só mesmo ela seria capaz de
ouvir, caiu ao chão morrendo sobre mim. Fui tão impotente não consegui acalmá-la
para que não tivesse vergonha de ser fruto do pecado, porque também era fruto
do verdadeiro amor.
Deus levou a alma do meu anjinho para perto de
si, e para perto de mim também, que entreguei o meu corpo à igreja e a minha
alma aos céus.
Autora
Sofia Ferreira
11ºB
Sofia Ferreira
11ºB
2 comentários:
Parabéns!
Uma das melhores - senão a melhor - versão de D. Madalena que alguma recebi.
Rigor, precisão e uma linguagem de que brota toda a doçura, aflição e amor desta personagem.
Muito bem.
"que alguma vez recebi.", claro...faltava o vez!
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