terça-feira, 29 de novembro de 2016

Frei Luís de Sousa, Diário de D. Madalena

(não percam esta D. Madalena!)
28 de julho 1599



A minha tarde foi como tantas outras e como em mais nenhuma, no meu elegante palácio, no meio das minhas sedas, das minhas flores e porcelanas na sala onde eu tinha o quadro do meu amor, o meu cavaleiro Manuel de Sousa Coutinho.


Eu sempre soube que a harmonia em que estava a minha vida era passageira, sempre pressenti que esta felicidade não poderia ser duradoura nem infinita. E, naquele dia, as palavras do episódio de Inês de Castro faziam-me refletir mais sobre o engano e pecado em que vivo.

Telmo, o meu fiel aio e amigo, não gostei de o repreender, mas, ele e Maria têm uma relação tão forte que eu vivo neste medo constante do passado e do futuro, medo que ele lhe conte as coisas, medo que a minha única filha já tão fraquinha e nova sempre cheia de perguntas, encha aquela cabeça com coisas tão fora da sua idade.


O Telmo acredita e, não perde a esperança, de que D. Sebastião e … o meu … primeiro marido … reapareçam, que tormento. Mas ele sabe que fiz de tudo e gastei tudo e mais nada poderia ter feito, naqueles 7 anos, para encontrar D. João de Portugal, o seu tão adorado amo, que me foi dado como morto naquela terrível batalha, por isso prometeu nunca mais mencionar este assunto, especialmente, a Maria.

Maria acredita plenamente que D. Sebastião vai reaparecer e que a batalha de Alcácer Quibir não é como contam, e, assim como o povo, ela vive nesta cega esperança que me tira tantas noites de sono. Sinto-a cada vez mais frágil e enfraquecida, amo-a e não desejei outro filho tanto quanto a desejei e, vê-la sempre em casa fechada, a ouvir histórias, a ler, a estudar, faz-me viver em constante sobressalto, mas não consigo que ela vá para a rua conviver com as crianças da sua idade.

Quando o meu irmão Jorge chegou, eu pressenti desgraça, mas queria ouvir a boa nova. Como os meus pressentimentos falam sempre mais alto … só quando meu querido Manuel chegou, percebi, ele nunca reagira daquela maneira, estava estranho, não haveria nada a fazer, os governadores castelhanos vinham mesmo ocupar a nossa casa, o meu lar, e o da minha família.


No meio de toda aquela confusão, onde Doroteia e Miranda corriam de um lado para o outro com os nossos principais pertences, percebemos que os governadores adiantaram a vinda e estavam a chegar. O chão caiu-me sobre os pés e Manuel disse-me que iriamos para o palácio de João de Portugal.

Tentei dissuadi-lo, implorei por tudo, para irmos para qualquer sitio menos aquela casa. Ele conhecia o meu passado, sabia o meu medo de um reencontro com este, mas se era para onde ele queria ir eu segui-lo-ia.

Quando estávamos de saída, uma esperança de que tudo aquilo fosse temporário dissipou-se, quando vi o meu bravo, corajoso e destemido marido pegar fogo a nossa casa. Fugir não foi o meu primeiro pensamento, assim que vejo o meu quadro, o quadro do meu cavaleiro, ficar entre as chamas, mas já não havia nada a fazer.

Durante a viagem escorreram-me as lágrimas pela face, e, pensar, que o único sitio seguro neste momento é esta casa, o meu pesadelo tornou se uma realidade atroz.



1 de agosto de 1599

dias que cheguei a esta escura, fria e austera casa, nem dei pelo tempo passar. Para cada canto que olho, revivo o passado, um passado que eu queria que não me assombrasse, e, aquele retrato … retira-me as forças para sair do quarto ou para escrever.
Provavelmente, Maria precisa de mim, mas pensa que estou doente e, sempre tem o Telmo, que dá conta do recado. No entanto, este medo constante está mesmo a deixar-me doente, mas eu sei que, enquanto, não perder Manuel, o meu amor, a minha vida, o meu porto de abrigo hei-de sair deste quarto e recompor me…



4 de agosto de 1599

Nesta manhã, logo hoje … quando ouvi a voz de Manuel, tive as primeiras forças para sair do quarto. Eu, já sabia pelo Telmo da boa nova. Manuel poderia vir para perto de nós, não teria mais que se esconder. Mesmo que tivesse que ser nesta casa, a única coisa que eu pensei foi, estamos finalmente em família, posso voltar a sentir-me feliz e concentrar-me mais no presente. 
Mas, claro, que nada correu como esperado. Eu também percebo que, só as orações de Maria não chegariam para resolver os problemas, mas eu não conseguia orar para outra coisa, como orei pelo passado que eu pretendia afastar.
Manuel avisou-me que teria de ir a Lisboa, ele estava em divida para com o arcebispo depois do que fizera, à rebelião, à nossa casa, e como já uma semana tivera passado, desde o acontecimento, os ânimos já tinham acalmado. Era preferível ele deixar-me só neste dia …o pior dia …, mas eu saberia que ele não teria de pagar a sua divida com a vida.
Maria, pobre criança, quis ir com o pai a Lisboa, ao convento, conhecer a Tia Joana. Como eu quis que ela ficasse comigo, a fazer-me companhia, mas eu não podia ser egoísta a esse ponto, era uma oportunidade de ela apanhar ar. É uma criança com uma sensibilidade e inteligência invulgares, mas já nem sei se é efeitos da doença, anda sempre tão quente e rosadinha. Por outro lado, aqueles ares de Lisboa, à tão pouco contaminados de peste … orei pelo melhor dela e do meu querido, o meu maior medo sempre foi perdê-los, ficar só neste mundo, outro tormento foi para a minha alma.

Jorge sempre me acalma, mas hoje mal ele sabia que nada me poderia tirar deste desassossego, não aguentei e contei-lhe o que esta sexta feira tinha de especial. O dia, do meu primeiro … casamento, o dia do desaparecimento de D. Sebastião e o dia em que vi, pela primeira vez, Manuel Coutinho e me apaixonei nesse mesmo segundo, sim, eu incluo-o nas infelicidades, pois, este amor, nasceu do pecado … D. João de Portugal ainda estava vivo e, tudo o que a minha alma e o meu corpo desejavam era Manuel de Sousa Coutinho. Eu amei-o, naquele momento, apesar de saber que era um crime, no fundo nunca o senti como tal … eu nunca amei D. João, casei tão nova e imatura.




Quando aquele peregrino, vindo dos Santos Lugares, bateu à porta com um recado para mim, não poderia imaginar que seria um recado do passado, até que depois, claro, de lhe oferecer de comer e agasalho e de este rejeitar com tamanha arrogância, pressenti que o que eu tanto temi durante estes 21 anos, estava a um passo de se realizar. Devo ter ficado pálida como cal, quando o Romeiro trouxe o recado de D. João de Portugal que, afinal, vivo estivera todos estes anos, cativo. Quis tanto que fosse um engano daquele homem, mas ele virou-se para o retrato, aquele retrato, de que eu nada gosto e aí, as dúvidas não eram nenhumas e não poderia ter pensado em mais ninguém, como pensei em Maria, que é o fruto do meu pecado.


4-5 de agosto de 1599

Já era tão tarde e eu, só queria que o meu amor me ouvisse, queria que pelo nosso amor, pelas memórias da nossa felicidade antiga, pelas saudades de tanto amor e ventura não se precipitasse e que pensasse que este Romeiro, este vagabundo, um homem que se diz ser ninguém, estivesse a mentir e em vez disso entregou-se a uma fé e crença de forma tão cega, que apenas me falou da impossibilidade do nosso amor.
E era verdade, não poderíamos continuar juntos. A nossa desculpa para com Deus, já não existia. Estava tão só neste mundo, foi o castigo divino do meu pecado, tirou-me Manuel e também Maria, que eu já nem sabia se dormia ou se estava morta. A minha única saída eram as mortalhas e a minha sepultura seria o claustro.

Tive que tentar dissuadir, as vezes que conseguisse, Manuel. Mas este, tão bom homem, nem me deixou abraçá-lo uma última vez e, na capela da Senhora da Piedade, na igreja de S. Paulo dos Dominicanos d’Almada, eu, ao lado de Manuel, já com o hábito de noviça e, ajoelhada sobre o arcebispo e o prior de Benfica, pronta para a minha redenção, oiço Maria. Estava viva, a minha menina. Bem que pediu misericórdia pela nossa família, mas não havia nada a fazer. Ela tentou, na mesma, lutar pelos pais. Ao menos, serviu pelo abraço que os três demos, que acabou pouco depois, quando Maria agarrada à minha mortalha, ao ouvir algo, que só mesmo ela seria capaz de ouvir, caiu ao chão morrendo sobre mim. Fui tão impotente não consegui acalmá-la para que não tivesse vergonha de ser fruto do pecado, porque também era fruto do verdadeiro amor.

 Deus levou a alma do meu anjinho para perto de si, e para perto de mim também, que entreguei o meu corpo à igreja e a minha alma aos céus.  

Autora
Sofia Ferreira
11ºB

2 comentários:

Noémia Santos disse...

Parabéns!

Uma das melhores - senão a melhor - versão de D. Madalena que alguma recebi.

Rigor, precisão e uma linguagem de que brota toda a doçura, aflição e amor desta personagem.

Muito bem.

Noémia Santos disse...

"que alguma vez recebi.", claro...faltava o vez!