[...]
E esse ano passou. Gente nasceu,
gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.
Nos fins de 1886, Carlos veio fazer
o Natal perto de Sevilha, a casa dum amigo seu de Paris, o marquês de Vila-Medina.
E dessa propriedade dos Vila-Medina, chamada La Soledad, escreveu para Lisboa
ao Ega anunciando que - depois dum exílio de quasi dez anos, resolvera vir ao
velho Portugal ver as árvores de Santa Olávia e as maravilhas da Avenida.
[...] E numa luminosa e macia manhã de janeiro de 1887, os dois amigos
enfim juntos almoçavam num salão do Hotel Braganza, com as duas janelas abertas
para o rio.
Ega, já curado, radiante, numa
excitação que não se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o
monóculo para admirar Carlos e a sua «imutabilidade».
- Nem uma branca, nem uma ruga, nem
uma sombra de fadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arrasa. Olha para
mim, olha para isto!
Com o dedo magro apontava os dois
vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo
era a calva, uma calva que começara havia dois anos, alastrara, já reluzia no
alto.
- Olha este horror! A ciência para
tudo acha um remédio, menos para a calva! Transformam-se as civilizações, a
calva fica!... Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?
- É a ociosidade, lembrou Carlos
rindo.
- A ociosidade... E tu, então?
De resto, que podia ele fazer neste
país?... Quando voltara de França, ultimamente, pensara em entrar na
diplomacia. Para isso sempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá
estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira.
Por fim, em que consistia a diplomacia portuguesa? Numa outra forma da
ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da própria
insignificância. Antes o Chiado!
E como Carlos lembrava a Política,
ocupação dos inúteis, Ega trovejou. A política! Isso tornara-se moralmente e
fisicamente nojento, desde que o negócio atacara o constitucionalismo como uma
filoxera! Os políticos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e
tomavam atitudes porque dois ou três financeiros por traz lhes puxavam pelos
cordéis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas
qual! Aí é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam,
não limpavam as unhas... Coisa extraordinária, que em país algum sucedia, nem
na Roménia, nem na Bulgária! Os três ou quatro salões que em Lisboa recebem
todo o mundo, seja quem for, largamente, excluem a maioria dos políticos. E
porque? Porque as senhoras têm nojo!
[...]
Carlos e Ega iam ao Ramalhete
visitar o casarão.[...]
Pois tudo somado, menino, observou
Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente
preferível.
Estavam no Loreto; e Carlos parara,
olhando, reentrando na intimidade daquele velho coração da capital. Nada
mudara. A mesma sentinela sonolenta rondava em torno à estátua triste de
Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazões eclesiásticos, pendiam nas
portas das duas igrejas. O Hotel Aliance conservava o mesmo ar mudo e deserto.
Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapéu à faia fustigavam as
pilecas; três varinas, de canastra à cabeça, meneavam os quadris, fortes e
ágeis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina
defronte, na Havaneza, fumavam também outros vadios, de sobrecasaca,
politicando.
- Isto é horrível quando se vem de
fora! exclamou Carlos. Não é a cidade, é a gente. Uma gente feiíssima,
encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada!...
- Todavia Lisboa faz diferença,
afirmou Ega, muito sério. Oh, faz muita diferença! Hás-de ver a Avenida...
Antes do Ramalhete vamos dar uma volta à Avenida.
Foram descendo o Chiado. Do outro
lado os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos
reconhecia, encostados ás mesmas portas, sujeitos que lá deixara havia dez
anos, já assim encostados, já assim melancólicos. Tinham rugas, tinham brancas.
Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas ombreiras, com
colarinhos à moda.
[...]
Subitamente Ega parou:
- Ora aí tens tu essa Avenida!
Hein?... Já não é mau!
Num claro espaço rasgado, onde
Carlos deixara o Passeio Publico pacato e frondoso - um obelisco, com borrões
de bronze no pedestal, erguia um traço cor de açúcar na vibração fina da luz de
inverno: e os largos globos dos candeeiros que o cercavam, batidos do sol,
brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no
ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguais, os pesados prédios, lisos e
aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde nigrejavam
piteiras de zinco, e pátios de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde
guarda-portões chupavam o cigarro: e aqueles dois hirtos renques de casas
ajanotadas lembravam a Carlos as famílias que outrora se imobilizavam em filas,
dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo a Banda, com
casimiras e sedas, no catitismo domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal
nova. Aqui e além um arbusto encolhia na aragem a sua folhagem pálida e rara. E
ao fundo a colina verde, salpicado de árvores, os terrenos de Vale de Pereiro,
punham um brusco remate campestre àquele curto rompante de luxo barato - que
partira para transformar a velha cidade, e estacara logo, com o fôlego curto,
entre montões de cascalho.
Mas um ar lavado e largo circulava;
o sol dourava a caliça; a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e
adoçava. E os dois amigos sentaram-se num banco, junto de uma verdura que
orlava a água dum tanque esverdinhada e mole.
Pela sombra passeavam rapazes, aos
pares, devagar, com flores na lapela, a calça apurada, luvas claras fortemente
pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miúda que Carlos não
conhecia. Por vezes Ega murmurava um olá!, acenava com a bengala. E eles iam,
repassavam, com um arzinho tímido e contrafeito, como mal acostumados àquele
vasto espaço, a tanta luz, ao seu próprio chic. Carlos pasmava. Que faziam,
ali, ás horas de trabalho, aqueles moços tristes, de calça esguia? Não havia
mulheres. Apenas num banco adiante uma criatura adoentada, de lenço e chale,
tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de
hospedes, arejavam um cãosinho felpudo. O que atraia pois ali aquela mocidade
pálida? E o que sobretudo o espantava eram as botas desses cavalheiros, botas
despropositadamente compridas, rompendo para fora da calça colante com pontas
aguçadas e reviradas como proas de barcos varinos...
- Isto é fantástico, Ega!
Ega esfregava as mãos. Sim, mas
precioso! Porque essa simples forma de botas explicava todo o Portugal
contemporâneo. Via-se por ali como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio
antigo, à D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira
arranjar-se à moderna: mas sem originalidade, sem força, sem carácter para
criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro -
modelos de ideias, de calças, de costumes, de leis, de arte, de cozinha...
Somente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a
impaciência de parecer muito moderno e muito civilizado - exagera o modelo,
deforma-o, estraga-o até à caricatura. O figurino da bota que veio de fora era
levemente estreito na ponta; - imediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao
bico do alfinete. Por seu lado o escritor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine
em estilo precioso e cinzelado; - imediatamente retorce, emaranha, desengonça a
sua pobre frase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o
legislador ouve dizer que lá fora se levanta o nível da instrução; -
imediatamente põe no programa dos exames de primeiras letras a metafísica, a
astronomia, a filologia, a egiptologia, a cresmatica, a crítica das religiões
comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por aí adiante assim, em todas
as classes e profissões, desde o orador até ao fotografo, desde o jurisconsulto
até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Tomé, que
vêem os europeus de lunetas - e imaginam que nisso consiste ser civilizado e
ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura
acavalam no nariz três ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de cor. E
assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no
desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para
serem imensamente civilizados e imensamente brancos...
Carlos ria:
- De modo que isto está cada vez
pior...
- Medonho! É dum reles, dum postiço!
Sobretudo postiço! Já não há nada genuíno neste miserável país, nem mesmo o pão
que comemos!
Carlos, recostado no banco, apontou
com a bengala, num gesto lento:
- Resta aquilo, que é genuíno...
E mostrava os altos da cidade, os
velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas
encostas ressequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os
conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas eclesiásticas, lembrando o frade
pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades de
opa atulhando os adros, erva doce juncando as ruas, tremoço e fava-rica
apregoada ás esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda,
recortando no radiante azul a miséria da sua muralha, era o castelo, sórdido e
tarimbeiro, de onde outrora, ao som do hino tocado em fagotes, descia a tropa
de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por ele, no escuro bairro de S.
Vicente e da Sé, os palacetes decrépitos, com vistas saudosas para a barra,
enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicência, a devoção e a
bisca, arrasta os seus derradeiros dias, caquética e caturra, a velha Lisboa
fidalga!
Ega olhou um momento, pensativo:
- Sim, com efeito, é talvez mais
genuíno. Mas tão estúpido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se há de
voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda pior!
[...]
Subiram ao comprido da Avenida,
procurando.
Eram quatro horas, o sol curto de
inverno tinha já um tom pálido.
[...]
Ainda falavam de Portugal e dos seus
males quando a tipóia parou. Com que comoção Carlos avistou a fachada severa do
Ramalhete, as janelinhas abrigadas à beira do telhado, o grande ramo de
girassóis fazendo painel no lugar do estudo de armas! Ao ruído da carruagem,
Vilaça apareceu à porta, calçando luvas amarelas. Estava mais gordo o Vilaça -
e tudo na sua pessoa, desde o chapéu novo até ao castão de prata da bengala,
revelava a sua importância como administrador, quasi directo senhor durante o
longo desterro de Carlos, daquela vasta casa dos Maias. Apresentou logo o
jardineiro, um velho, que ali vivia com a mulher e o filho, guardando o casarão
deserto. Depois felicitou-se de ver enfim os dois amigos juntos. E ajuntou,
batendo com carinho familiar no ombro de Carlos:
- Pois eu, depois de nos separarmos
em Santa Apolónia, fui tomar um banho ao Central e não me deitei. Olhe que é uma
grande comodidade o tal sleeping-car! Ah lá isso, em progresso, o nosso
Portugal já não está atrás de ninguém!... E V. Exc.ª agora precisa de mim?
- Não, obrigado, Vilaça. Vamos dar
uma volta pelas salas... Vá jantar conosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que
há petiscos especiais.
E os dois amigos atravessaram o
peristilo. Ainda lá se conservavam os bancos feudais de carvalho lavrado,
solenes como coros de catedral. Em cima porém a ante-câmara entristecia, toda
despida, sem um móvel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros.
Tapeçarias orientais que pendiam como numa tenda, pratos mouriscos de reflexos
de cobre, a estátua da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de
mármore, ao meter o pésinho na água - tudo ornava agora os aposentos de Carlos
em Paris: e outros caixões empilhavam-se a um canto, prontos a embarcar,
levando as melhores faianças da Toca. Depois no amplo corredor, sem tapete, os
seus passos soaram como num claustro abandonado. Nos quadros devotos, num tom
mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um ombro descarnado de
eremita, a mancha lívida duma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantara a
gola do paletó.
No salão nobre os móveis de brocado
cor de musgo estavam embrulhados em lençóis de algodão, como amortalhados,
exalando um cheiro de múmia a terebentina e cânfora. E no chão, na tela de
Constable, encostada à parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido
escarlate de caçadora inglesa, parecia ir dar um passo, sair do caixilho
dourado, para partir também, consumar a dispersão da sua raça...
- Vamos embora, exclamou Ega. Isto
está lúgubre...
[...]
- Vamos ao terraço! Dá-se um olhar
ao jardim, e abalamos!
Mas deviam atravessar ainda a
memória mais triste, o escritório de Afonso da Maia. A fechadura estava perra.
No esforço de abrir a mão de Carlos tremia. E Ega, comovido também, revia toda
a sala tal como outrora, com os seus candeeiros Carcel dando um tom cor de
rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifácio sobre a pele de urso, e Afonso
na sua velha poltrona, de casaco de veludo, sacudindo a cinza do cachimbo
contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na
grotesca, absurda surpresa de romperem ambos a espirrar, desesperadamente,
sufocados pelo cheiro acre dum pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava.
Fora o Vilaça, que, seguindo uma receita de almanaque, fizera espalhar ás mãos
cheias, sobre os móveis, sobre os lençóis que os resguardavam, camadas espessas
de pimenta branca! E estrangulados, sem ver, sob uma névoa de lágrimas, os dois
continuavam, um defronte do outro, em espirros aflictivos que os desengonçavam.
[...]
Entraram no quarto. Vilaça, na
suposição de Carlos vir para o Ramalhete, mandara-o preparar; e todo ele
regelava - com o mármore das cómodas espanejado e vazio, uma vela intacta num
castiçal solitário, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem
cortinados. Carlos pousou o chapéu e a bengaIa em cima da sua antiga mesa de
trabalho. Depois, como dando um resumo:
- E aqui tens tu a vida, meu Ega!
Neste quarto, durante noites, sofri a certeza de que tudo no mundo acabara para
mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trapa. E tudo isto friamente,
com uma conclusão lógica. Por fim dez anos passaram, e aqui estou outra vez...
Parou diante do alto espelho
suspenso entre as duas colunas de carvalho lavrado, deu um jeito ao bigode, concluiu,
sorrindo melancolicamente:
- E mais gordo!
[...]
Carlos no entanto fora examinar,
junto da janela, um quadro que pousava no chão, para ali esquecido e voltado
para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de
camurça na mão, os grandes olhos árabes na face triste e pálida que o tempo
amarelara mais. Colocou-o em cima duma cómoda. E atirando-lhe uma leve
sacudidela com o lenço:
- Não há nada que me faça mais pena
do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar
para Paris.
Então Ega perguntou, do fundo do
sofá onde se enterrara, se, nesses últimos anos, ele não tivera a ideia, o vago
desejo de voltar para Portugal...
Carlos considerou Ega com espanto.
Para quê? Para arrastar os passos tristes desde o Grémio até à Casa Havaneza?
Não! Paris era o único lugar da terra congenere com o tipo definitivo em que
ele se fixara: - «o homem rico que vive bem». Passeio a cavalo no Bois; almoço
no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornais; um bocado
de florete na sala de armas; à noite a Comédie Française ou uma soirée;
Trouvile no verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e através do ano as
mulheres, as corridas, certo interesse pela ciência, o bric-à-brac, e uma pouca
de blague. Nada mais inofensivo, mais nulo, e mais agradável.
- E aqui tens tu uma existência de
homem! Em dez anos não me tem sucedido nada, a não ser quando se me quebrou o
faeton na estrada de Saint-Cloud... Vim no Figaro.
Ega ergueu-se, atirou um gesto
desolado:
- Falhámos a vida, menino!
- Creio que sim... Mas todo o mundo
mais ou menos a falha. Isto é falha-se sempre na realidade aquela vida que se
planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a beleza está em ser
assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre
marquês. Às vezes melhor, mas sempre diferente.
Ega concordou, com um suspiro mudo,
começando a calçar as luvas.
O quarto escurecia no crepúsculo
frio e melancólico de inverno. Carlos pôs também o chapéu: e desceram pelas
escadas forradas de veludo cor de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de
ferrugem, a panóplias de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo
olhar ao sombrio casarão, que naquela primeira penumbra tomava um aspecto mais
carregado de residência eclesiástica, com as suas paredes severas, a sua fila de
janelinhas fechadas, as grades dos postigos térreos cheias de treva, mudo, para
sempre desabitado, cobrindo-se já de tons de ruína.
Uma comoção passou-lhe na alma,
murmurou, travando do braço do Ega:
- É curioso! Só vivi dois anos nesta
casa, e é nela que me parece estar metida a minha vida inteira!
Ega não se admirava. Só ali no
Ramalhete ele vivera realmente daquilo que dá sabor e relevo à vida - a paixão.
- Muitas outras coisas dão valor à
vida... Isso é uma velha ideia de romântica, meu Ega!
- E que somos nós? exclamou Ega. Que
temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é,
indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela
razão...
Mas Carlos queria realmente saber
se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se
desviando nunca dela, torturando-se para se manter na sua linha inflexível,
secos, hirtos, lógicos, sem emoção até ao fim...
- Creio que não, disse o Ega. Por
fora, à vista, são desconsolar-se. E por dentro, para eles mesmos, são talvez
desconsolados. O que prova que neste lindo mundo ou tem de se ser insensato ou
sem sabor...
- Resumo: não vale a pena viver...
- Depende inteiramente do estômago!
atalhou Ega.
Riram ambos. Depois Carlos, outra
vez sério, deu a sua teoria da vida, a teoria definitiva que ele deduzira da
experiência e que agora o governava. Era o fatalismo muçulmano. Nada desejar e
nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo
aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquilidade com que se acolhem as
naturais mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, nesta placidez, deixar
esse pedaço de matéria organizada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e
decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter
apetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em suma, concordava. Do que ele
principalmente se convencera, nesses estreitos anos de vida, era da inutilidade
do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na
terra - porque tudo se resolve, como já ensinara o sábio do Eclesiastes, em
desilusão e poeira.
- Se me dissessem que ali em baixo
estava uma fortuna como a dos Rotschilds ou a coroa imperial de Carlos V, à
minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o
passo... Não! Não saia deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é
o único que se deve ter na vida.
- Nem eu! acudiu Carlos com uma
convicção decisiva.
E ambos retardaram o passo, descendo
para a rampa de Santos, como se aquele fosse em verdade o caminho da vida, onde
eles, certos de só encontrar ao fim desilusão e poeira, não devessem jamais
avançar senão com lentidão e desdém. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de
luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:
- Que ferro! E eu que vinha desde
Paris com este apetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande
prato de paio com ervilhas.
E agora já era tarde, lembrou Ega.
Então Carlos, até aí esquecido em memórias do passado e síntese da existência,
pareceu ter inesperadamente consciência da noite que caíra, dos candeeiros
acesos. A um bico de gás tirou o relógio. Eram seis e um quarto!
- Oh, diabo!... E eu que disse ao Vilaça
e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não aparecer por
aí uma tipóia!...
- Espera! exclamou Ega. Lá vem um
«Americano», ainda o apanhamos.
- Ainda o apanhamos!
Os dois amigos lançaram o passo,
largamente. E Carlos, que arrojara o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria
que lhes cortava a face:
- Que raiva ter esquecido o
paiosinho! Enfim, acabou-se. Ao menos assentamos a teoria definitiva da
existência. Com efeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para
coisa alguma...
Ega, ao lado, ajuntava, ofegante,
atirando as pernas magras:
- Nem para o amor, nem para a
gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...
A lanterna vermelha do «Americano»,
ao longe, no escuro, parara. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança,
outro esforço:
- Ainda o apanhamos!
- Ainda o apanhamos!
De novo a lanterna deslizou, e
fugiu. Então, para apanhar o «Americano», os dois amigos romperam a correr
desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade
do luar que subia.
Eça de Queirós, Os Maias
1 comentário:
Atenção, já depois de publicado, detetei vários exemplos de "às" mal acentuado.
Fica a correção (não consigo emendar no texto)
Enviar um comentário